Uma tarde sem a escravidão das telas
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O mês de outubro de 2021 começou com uma segunda-feira atípica para muitos dos brasileiros que utilizam-se dos aplicativos e redes sociais para “viver”.

E deu-se o bug! Para quem não está familiarizado com o termo, trata-se de uma expressão que a tecnologia inventou para dizer, numa única palavra, que o sistema falhou. Aconteceu justamente numa segunda-feira (4), início da semana. Passamos uma tarde sem facebook, whatsapp, instagram, o que deu um looping na vida dos cerca de 170 milhões de brasileiros que têm acesso à internet. Sim, porque há cerca de 40 milhões (segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua de 2021) que não podem, por exemplo, ler este texto, quer seja porque moram longe do alcance de uma operadora, quer seja não têm dispositivo algum para acessar a rede. Coisas desse mundo digitalizado, global e muito desigual.

Voltemos à tarde do bug do Face e do zap (permitam-me a ousadia das abreviações). Gosto da ideia de refletir sobre o fenômeno, e é claro que há vários caminhos e vários autores que nos permitem ampliar o pensamento nesse caso. Muitos amigos e amigas relataram-me uma sensação de alívio, já que as mensagens enviadas pelo zap (de novo, permitam-me a abreviação) deram trégua, paz, chance de pensar mais, de ler melhor, sem a exigência de respostas rápidas. Não lhes parece que, com o zap, os problemas adquiriram um eterno sentido de urgência?

Sobre isto, trago o escritor coreano Byung-Chul Han, que escreveu “Sociedade do cansaço” (Editora Vozes, 2015), um livrinho de poucas páginas e pequeno no formato, mas muito importante para ter na estante nesses tempos. Han fala sobre excessos, o que dá para perceber por causa do título que deu à sua obra.

“Os perigos não espreitam hoje da negatividade do inimigo, e sim do excesso de positividade, que se expressa como excesso de rendimento, excesso de produção e excesso de comunicação”, escreve Byung Chul Han.

O pensador reflete sobre a sociedade ‘do desempenho”, que teria tomado o lugar da “sociedade disciplinar”, descrita por Michel Foucault como aquela “feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas”. Agora estamos imersos em “academias fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shoppings e laboratórios de genética’. E os habitantes dessa nova sociedade, ou seja, nós, já não somos chamados de “sujeitos da obediência”, mas de ‘sujeitos do desempenho e da produção”.

Faz sentido, assim, o pânico de alguns empreendedores – vamos chamar assim às pessoas que perderam seus empregos e agora precisam criar para ganhar dinheiro, tendo como base, sempre, o computador e a web – com a falta de seus instrumentos de trabalho na tarde da segunda-feira. Os pequenos, que agora se sentem incluídos socialmente porque têm “Pix”, ficaram sem sua fonte de renda. E o medo de o apagão ser eterno?

Percebemos nossa escravidão virtual. Sobretudo quando alguns relatam alívio, mesmo com medo. Byung Chul-Han escreve: “O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, a pressão de desempenho. Visto a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida”.   

Sorte das nossas crianças, criadas por pais esgotados mas que têm a sensibilidade para tentar evitar infectar os filhos com o vírus do cansaço pela necessidade de alto desempenho. Evitemos os dispositivos para os corpos infantis, mesmo que só para brincadeira, mesmo que só para nos ajudar a mantê-los quietos. A tela vicia.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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