O primeiro bom dia vai para a turma que começa cedo, ali no prédio branco, bonito, envidraçado, que destoa um pouco mas dá um ar high tech à nossa rua. De uniforme cáqui, os trabalhadores estão sempre ali vassourando quando eu passo, cedinho, no começo do meu balé urbano diário.
Logo depois passa a moça com o dálmata barulhento e lindo. É daqueles cachorros que só fazem barulho e servem para agitar os baixinhos – como o meu Shih Tzu – que se acham donos da rua. Balanço a cabeça, faço um meneio para a dona dele e sorrio, talvez o primeiro sorriso do dia.
No fim da rua, o “bom dia” é para o Sr. Luís, que cuida do primeiro prédio. Àquela hora ele já varreu tudo o que tinha que varrer e está ali, observando o ambiente. Com ele eu estico um pouco a conversa.
“Tá com cara de chuva, né?” Ou… “Ih! Hoje vai esquentar os miolos”… Ou ainda… “Mas o senhor não sente frio? Nunca usa um casaco!”.
Foi assim que eu fiquei sabendo que o Sr. Luís, pai do Dilson, zelador do prédio ao lado, nunca usou casaco em sua vida. Nasceu na Paraíba, guarda o sotaque, o jeitão e, pelo jeito, o calor que já sentiu em sua terra natal o mantém aquecido até hoje, aqui no Sudeste.
Faço o contorno da pracinha e acelero o passo. Mais à frente tem o zelador que gosta de plantas e me deu um pé de manacá para eu plantar no jardim do meu prédio. Foi a primeira árvore que plantei na vida. Está lá o arbusto, vamos ver se vinga.
Até chegar à rua principal, onde o barulho dos carros e ônibus atrapalha um pouco o pensamento, passo ainda pela calçada escolhida por moradores em situação de rua até a vizinhança expulsá-los de lá. Não se sabe para onde foram. Talvez ali mais para a frente, na porta do Banco poderoso, único que oferece uma marquise ainda sem grade. Já já eles arranjam um jeito de aumentar o desconforto dos pobres. Sempre arranjam.
Faço a volta, abano o braço para o vizinho do outro lado da calçada. Se estivéssemos do mesmo lado, certamente ele me pararia para um dedo de prosa. Adora conversar, o Delfim. Professor das antigas, mais de 80 anos de idade, já foi maratonista, não deixa de se exercitar diariamente, e adora vestir a camisa de seu time para perturbar os porteiros que torcem pelo outro time. Delfim e eu combinamos as ideias políticas e ele, como eu, gosta de se atualizar nas notícias. Outro dia, lembrou-se do seu tempo de maratonista e me deu uma aula:
“Vi você correndo. Você está pisando errado, o certo é assim, ó”.
Não é que eu consertei minha passada e tudo mudou? Meu coração passou a bater mais forte, acelerei e encurtei o tempo.
É mais ou menos assim minha caminhada. Um dia diferente do outro, vou descobrindo coisas, falando com pessoas, olhando em volta, fazendo contato. E pensando, é claro, porque esta é a minha essência. Não gosto de fones de ouvido, prefiro ouvir o som da rua, dos pássaros, das pessoas.
Mas tem gente que não me vê, nem nunca vão me ver ou a qualquer outro em seu caminho. São aqueles que saem de casa direto para a garagem do prédio, pegam seus carros, vão para o escritório. Estacionam e seguem, em elevadores, para o local de seu trabalho.
Pessoas que não pisam no chão, para quem o solo é de piso frio, para quem floresta bonita são as plantadas, de uma espécie única de árvore, enfileiradinha, “tudo limpinho”. Pessoas que se incomodam com a estética dos indígenas, sempre tão diversos. Pessoas para quem a diversidade espanta.
Mas, reparando bem, quando passo em frente à padaria e vejo os caminhões descarregando seus produtos, percebo que essas pessoas, que andam apenas de carro ou helicóptero ou jatinho, para quem o chão é frio, estão por trás dos produtos e máquinas que nos rodeiam. Conseguem vender coisas para quem está nas calçadas porque conhecem, teoricamente, seus desejos. Só teoricamente.
Os donos da Americanas, aqueles bilionários que deram um tremendo calote na turma de fornecedores, por exemplo. Eu sou capaz de apostar que nenhum deles jamais esteve na Americanas ali de Laranjeiras, ou de Botafogo, ou de Quixadá, muito menos, se tiver, em Araçatuba. Li em algum lugar que há 3.600 lojas dessas espalhadas pelo Brasil. Vendendo de tudo um pouco. De chicletes a grandes televisões, passando por cartões de games a shampoos. Ganharam muito dinheiro com isso, mas não fazem contato com aquilo que, em parte, rendeu-lhes parte da fortuna. Sim, eles ganham dinheiro com outras tantas coisinhas…
É a diversidade que me inspira a escrever. E vou costurando pensamentos a partir dos fatos, já que sou jornalista.
Amanhã, dia 25, termina o Fórum Social Mundial (FSM) em Porto Alegre, movimento que nasceu em 2001 para se contrapor ao Forum Econômico Mundial, que ocorre também anualmente em Davos, na Suíça. O FSM é nômade, acontece cada ano em um lugar. O FSM tem muitos inscritos, muitas falas, às vezes até desnorteia quem quer acompanhar. Neste ano, está acontecendo na capital do Rio Grande do Sul e tem 1,5 mil inscritos, só para vocês terem uma ideia.
Mas o Fórum Econômico na Suíça também tem muitas palestras: neste ano, quase três mil líderes globais – incluindo mais de 350 líderes governamentais e 47 chefes de estado – subiram os Alpes para dar seu recado. Vários temas dominaram os debates, mas as questões climáticas e seus impactos, sobretudo na economia, tiveram o maior espaço.
Porto Alegre e Davos se tornaram, portanto, palco de debates construtivos, ricos, com vistas a melhorar nossa condição de vida no planeta. Na cidade gaúcha, debatedores vão falar sobre o novo Brasil que surge com o governo Lula. Vai ter encontro no Parque, encontro na Assembleia Legislativa e em outros espaços. Em Davos, o Fórum que terminou no dia 23 foi num único local, um resort nos Alpes suíços. Imaginem um líder como o presidente dos Estados Unidos. Ele sai da Casa Branca em seu jatinho, chega ao aeroporto de Davos, de lá é conduzido num carro até o Resort. Piso frio o tempo todo.
Quem pisa no chão? Quem ouve as pessoas? Quem sente a real temperatura do ambiente?
Não esperem que eu vá dar alguma conclusão final a este balé de palavras. São reflexões, pura e simplesmente, que decidi compartilhar com vocês nesses tempos tão prósperos em mudanças. Sim, as coisas estão mudando. Se será melhor ou pior, eu não sei, não tenho bola de cristal. Mas sei que as mudanças são boas para abrir caminho para a vida passar. E isto é bom, né?
Atenção: a foto mostra Davos, onde acontece o Fórum Econômico Mundial (World Economic Forum/Faruk Pinjo)
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.