Um texto de cinquenta anos provoca reflexões nos atuais habitantes do planeta
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“São os homens simplesmente primatas superiores e, como tais, sua importância não é maior que a de outros componentes dos ecossistemas naturais? Ou o Homem ocupa um lugar especial na Natureza”?

A frase está na introdução do livro “Uma Terra Somente”, publicado em 1972. Trata-se de “um extrato de aproximadamente 400 páginas de correspondência, oriundas de 40 países… dos pontos de vista conceituais que expressaram a respeito dos problemas a serem discutidos na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano” que, como se sabe, aconteceu em Estocolmo. A riqueza de detalhes do texto, finalizado pelos ambientalistas Barbara Ward (1914-1981) e René Dubos (1901-1982), abre algumas janelas de reflexão, que quero compartilhar com vocês. (A imagem que ilustra este texto é reprodução da capa do livro).

O pensamento principal que ocorre depois da leitura do livro é: se, há mais de meio século, estamos lidando com a perspectiva de que seria necessária uma mudança de rumo para garantir o bem viver de todos os homens no planeta, por que não conseguimos evoluir nesse sentido? Que se registre o fato insofismável: a tecnologia, que para muitos tem sido apontada como a bala de prata, é eficaz só para a turma que habita o primeiro andar da pirâmide social.

Minha pergunta é apenas o caminho para ampliar os pensamentos, já que, de fato, é impossível encerrar o debate numa resposta. São várias possibilidades, isto sim, e todas desaguam na mesma questão: é preciso ter capital. E o poder que o capital empresta às nações e às pessoas.

No momento exato em que se lê, nas principais manchetes, que o Produto Interno Bruto (PIB) de um país vai aumentar, as reações da sociedade são de regozijo. Faz sentido, afinal. Um PIB mais alto significa que o país entrará para um patamar econômico mais aceitável. E estará, assim, mais aberto a receber mais investidores. Ocorre que, a despeito de toda tecnologia que hoje temos disponível, a maioria dos grandes investimentos causam impactos sérios ao meio ambiente.

 À sociedade civil, que sente os impactos na ponta, resta tentar alertar sobre o problema. Mas… em geral, as queixas ficam no ar. Porque, não custa repetir, é mais importante que o país tenha um PIB elevado do que cuidar de suas populações ribeirinhas ou de suas florestas e bichos.

Vamos a um exemplo recente disso, dos muitos que temos. No dia 29 de março deste ano foi lançada a pedra fundamental para o projeto de construção de uma ponte ligando o Brasil à Bolívia. A rodovia deverá conectar áreas produtoras do agronegócio dos dois países aos portos com saída para o Atlântico, na bacia amazônica, e para o Pacífico, principalmente nas cidades de Arica, no Chile, e Illo, no Peru.

No site Infoamazonia,  a reportagem de Fabio Bispo mostra os dois lados dessa  realidade. Por um lado, sim, o negócio promete trazer empregos e desenvolvimento à região, já que vai viabilizar a exportação brasileira ‘a custos mais baixos para outros continentes e países, especialmente para China, que é o principal parceiro comercial da América do Sul”, explica o repórter.

A reportagem ouviu a pesquisadora Marta Cerqueira de Melo que, no entanto, chama a atenção para o fato de que “não se discute esse desenvolvimento dentro de um planejamento estratégico, em como ele vai se relacionar com as populações locais”.

 Na região existem 49 terras indígenas e 86 unidades de conservação, incluindo territórios com presença de indígenas isolados, que certamente sofrerão sérios impactos. Logo, a rodovia será um bom negócio para o agro. Mas é um negócio que em nada ajudará a humanidade a conviver de maneira respeitosa com o ambiente do entorno.

Portanto, com foco nesse caso, nem de longe o único, a resposta à pergunta inicial desse texto é: o Homem (com H maiúsculo como queriam os escritores) se sente no direito de “ocupar um lugar especial na natureza”. E sabemos bem para onde essa desconexão está nos levando.

O pior de tudo é que, enquanto bilionários podem pensar mesmo em continuar a vida em outro planeta depois de ajudarem a destruir o habitat que lhes cabe, a maioria precisa se deslocar a pé quando o território que habitam é arruinado pelos eventos climáticos causados pelas emissões de gases poluentes. Uma nova análise divulgada no mês passado pela InfluenceMap revelou que, de 2016 a 2022, 80% das emissões globais de dióxido de carbono foram produzidas por apenas 57 empresas em todo o mundo. Nem precisa dizer que as petroleiras Shell, BP e Chevron estão entre elas.

Mas, antes de levantarmos o dedo acusatorio, com legitimidade, para as corporações poluidoras, seria uma boa ideia que refletíssemos sobre a nossa real disponibilidade de mudar nossa cultura, muito baseada em combustíveis fósseis. Já imaginou um mundo sem plásticos, por exemplo?

Costumo dizer que não tenho respostas, mas muitas perguntas. Considero que formular perguntas é mais importante do que encontrar respostas. Na formulação das perguntas podemos ganhar tempo e subsídios para refletir sobre as mudanças que podemos tentar fazer, como tentar fazer, o tipo de resultados que esperamos. Queremos mudar para ajudar a humanidade, o planeta, ou ao nosso próprio dia a dia, que ele não seja importunado?

Ou… tudo isso junto e misturado?

Não chega a ser um alento, mas vale a pena saber que essas questões não nasceram agora, não têm a ver com redes sociais nem foram forçadas pela Inteligência Artificial. Ao contrário disso.

Volto ao livro que citei no início deste texto, que se deve ler com bastante respeito e atenção, não só porque foi escrito por pessoas sensíveis e estudiosas, como porque traça um cenário, já assustador, dos rumos da humanidade. Se tivessem sido levadas em conta as observações ali  descritas, possivelmente hoje estaríamos menos crucialmente espremidos entre a preservação e o desenvolvimento. Pincei um trecho que me parece bem interessante para terminar este artigo.

“Hoje, à medida que entramos nas últimas décadas do século XX, há uma sensação crescente de que algo de fundamental e possivelmente irrevogável está ocorrendo com as relação do Homem com seus dois mundos (o natural e as instituições). Nos últimos 200 anos e com hesitante aceleração nos últimos 25 anos, o poder, a extensão e a profundeza das intervenções do Homem na ordem natural parecem pressagiar uma nova época revolucionária na história humana, talvez a mais revolucionária que o pensamento possa conceber. O Homem parece, numa escala planetária, estar substituindo o controlado pelo incontrolado, o elaborado pelo rústico, o planejado pelo fortuito. E isso está sendo feito com uma velocidade e uma profundeza de intervenção desconhecidas em qualquer época anterior da história humana”.  

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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