Um passeio de trem pelas entranhas do Centro do Rio
VLT

Uma cidade tão desafiadora como o Rio de Janeiro está sempre convidando seus moradores mais antenados a descobrirem novos caminhos. Ontem pela manhã, com amigos, peguei um desses rumos que me possibilitou, senão conhecer, mas certamente perceber outros ângulos possíveis das cenas de sempre.

Turistamos pelo Veículo Leve sobre Trilhos, o VLT, que os cariocas, em respeito à sua fama de bem-humorados, batizaram com alguns apelidos. Os mais desanimados o chamam de “trem fantasma”, apelido que vem dos tempos primórdios, quando quase ninguém conhecia e utilizava o transporte. Aos poucos, outro apelido foi ganhando força: “trem da hora do almoço”, apontando sua pouca utilidade para a mobilidade urbana da cidade.

Mas isto é passado. O VLT hoje está sendo bem utilizado. Evitamos, por questões de conforto, o horário de rush. Mesmo assim, houve ocasiões em que sobravam poucos lugares para sentar nos vagões. Funcionários gentis e bem treinados nos ajudaram a criar uma atmosfera leve e atiçar a curiosidade que só se tem como visitantes em cidades estrangeiras.

O céu de verão nos embevecia, mesclando o azul de anil com o cinza das grossas nuvens que anunciavam a chuva do fim da tarde. Fazia um calorão típico de fevereiro. Mas, como o ar condicionado nos vagões é potente, o desconforto da temperatura elevada ficava do lado de fora, e acompanhávamos, dos janelões do trem, a paisagem ora ensolarada ora nublada.

 E é bom saber: a transferência entre linhas do sistema ou nova viagem no mesmo sentido em até uma hora são gratuitas, sempre com a validação do cartão de passagem no ato do embarque. E o cartão é pessoal e intransferível. Sendo assim, é possível fazer um passeio pelas ruas do Centro do Rio por apenas R$ 4,30.

Nossa viagem/passeio se tornou turística, cultural e histórica. Tudo começou quando prestamos atenção ao nome das estações. Praia Formosa, por exemplo. Alguém sabia que existia uma praia, no século XIX, ali onde hoje é a Rodoviária? A praia se foi, engolida pelo asfalto, pelo progresso, mas agora seu nome virou um dos “pontos finais” das linhas verde e azul do VLT. A linha amarela vai da Central à Candelária*.

Mal eu começava a divagar sobre o impacto do homem no ambiente ao redor, e lá estávamos nós a circular pelo outrora arrabalde aprazível e pitoresco chamado Gamboa. Hoje é um bairro da Zona Portuária, com casas antigas, calçadas estreitas, comércio de baixa renda. A volta pela Gamboa desperta reflexões sobre desigualdade social. Afinal, a parada seguinte é a do Morro da Providência: e ficamos pensando como terá sido o acordo entre as pessoas que ali moram e que, de um dia para o outro, passaram a ter um trem passando em sua porta de vinte em vinte minutos.

Como estávamos felizes e de bom astral, preferimos acreditar no melhor. Correu tudo bem, foram todos indenizados, e vida que segue.

Próxima parada: Harmonia. Uma praça tão linda e bucólica, com direito a coreto e tudo! Do outro lado, o Moinho Fluminense, primeira fábrica brasileira de moagem de trigo, construído no século XIX por ordem da Princesa Isabel. E está ali hoje, mostrando-se inteiro, imponente, aos nossos olhares curiosos. Dizem que vai se transformar num espaço multiuso, se der certo o plano de revitalização do Centro do Rio. Oxalá!

De carro, ou mesmo de ônibus, seria difícil fazermos tanto contato com tanta história da cidade. Qual turistas, fomos nos deliciando e esticando a conversa, os pensamentos. Criamos até um conceito: viramos jacobianos!

Jane Jacobs é uma escritora e ativista política norte-americana que escreveu “Morte e vida nas grandes cidades” (Ed. Martins Fontes), no qual faz críticas à política de ocupação dos espaços publicos nos Estados Unidos, década de 50. É um livro que não deve faltar na estante de quem gosta do tema.

Jacobs aposta na diversidade das cidades, o que ela considera a maior riqueza. E é justamente a diversidade o que mais se observa das janelas do trem supermoderno. Gosto, em especial, desse trecho do livro de Jacobs:

“A presença de pessoas atrai outras pessoas, e isto é uma coisa que os planejadores e projetistas têm dificuldade em comprender. Eles partem do princípio de que os habitantes das cidades preferem contemplar o vazio, a ordem e o sossego palpáveis”.

No exato instante em que nos dávamos conta da pluralidade que encanta as cidades, lembramo-nos de Le Corbusier, arquiteto e urbanista suíco, que encabeçou a Carta de Atenas (Ed. USP). A Carta foi escrita por um grupo de arquitetos e urbanistas chamado para reedificar cidades depois das guerras. Enquanto Jacobs se ocupa com pessoas, os arquitetos focaram na arquitetura, nas construções,  como responsável pelo bem-estar e pela beleza das cidades. “Cada indivíduo deve ter acesso às alegrias fundamentais: o bem-estar do lar, a beleza da cidade”, dizem eles.

Naquele momento do passeio, já plenos de boas reflexões, decidimos nos entregar ao prazer da boa comida. Decidimos, então, parar o passeio ali na estação Marechal Floriano, atravessamos o trilho e fomos comer o omelete mais antigo da cidade na centenária Casa Paladino, clássico da boa e velha gastronomia de boteco do Rio.

Custódio Coimbra, fotógrafo de primeira, um dos amigos que estava no grupo de “turistas”, foi clicando durante todo o caminho. E ofereceu-me, gentilmente, algumas fotos que compartilho aqui com vocês. Fica a dica: vale a pena o passeio.

* Todos os trajetos estão no site da empresa e em cada estação. Vale lembrar que em cada estação existem máquinas onde é possível carregar o cartão que dá acesso ao trem.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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