A leitura de ‘Sumário de Plantas Oficiosas – Um Ensaio sobre a Memória da Flora”, recém-lançado pela Editoria Fósforo, exige delicadeza e tempo. Sim, eu sei que estes são dois grandes desafios para nossa era de poucos caracteres e de muita celeridade. Mas o bônus que se ganha com a leitura que estou sugerindo, não é apenas a leveza do corpo, garantia da respiração mais lenta e da contemplação. O autor, o professor colombiano Efrén Giraldo, borda com as palavras, mesclando em seus desenhos de pura emoção e poesia, as plantas, seus nomes científicos, hábitos e habitats. Assim, reserva aos litores também um jorro de emoções, fenômeno também pouco usual em tempos de tantas comoções uniformes extraídas sob o manto das representações.

Diferentemente do italiano Stefano Mancuso, pioneiro da neurobiologia das plantas, que nos oferece as entranhas comportamentais da flora, Giraldo vive com elas uma relação desde a infância. E vai contando aos leitores passagens sensíveis de sua história. Um menino criado em Antioquia, na Colômbia, sem recursos financeiros, mas com uma imensa e diversa bagagem de cultura sobre as riquezas naturais.
Caiu-me um cisco no olho, por exemplo, quando ele compartilha a história de um conto de Tomás Carrasquilla, escrito em 1915, que ouviu quando criança e do qual nunca mais se esqueceu. Narra a triste vida de Maria Engracia, uma mulher que só tinha um teto para se aninhar, sem mais nada, sem um enfeite a lhe colorir os dias. Vivia da caridade alheia. Um dia, uma planta quase morta caiu de um caminhão de mudanças, e Maria a recolheu, cuidou dela, a planta reviveu, ficou tão linda que toda a vizinhança vinha visitá-la para ver e comentar a respeito.
Nessa relação entre pobreza e flora, o conto vai anunciando a mudança na vida de Maria Engracia, que também parece ter recuperado o gosto pela vida, já que foi tão gentilmente agraciada pela reabilitação da planta. Àquela altura, ela já tinha uma folhagem e umas flores roxas, belíssimas.
“A história termina quando o dono do cortiço onde ela mora a expulsa e destrói a planta. Maria Engracia adoece e morre de depressão, mas não sem antes ser assistida pela visão da trepadeira, que lhe faz uma espécie de arco para entrar no paraíso”, conta Efrén Giraldo.
Num capítulo inteiro, o professor, que escreveu parte do livro durante o tempo de confinamento por conta da epidemia de Covid-19, exalta a experiência do herbário de Emily Dickinson, a poetisa norte-americana do século XIX, de cuja vida pouco se sabe. Como não dar valor a tanto esmero produzido por uma menina de 14 anos e sua mãe, colhendo e catalogando flores do entorno da casa onde viveu quase reclusa os 56 anos de sua vida?
“Flores, cartas e poemas são mais do que emissários de uma reclusão inexplicável e se convertem na mensagem sempre presente de quem dizia que suas obras eram cartas para um mundo que nunca lhe escreveu”, conta Giraldo.
Já tentei explicar para mim mesma o motivo de um título tão comprido e pouco atraente para um livro tão sensível. Por mais que tenha sido uma certa tendência a buscar leitores poucos e bons, e se isto é verdade e não uma simples conclusão desajeitada de minha parte, fato é que Efrén Giraldo não chegou a mim, aqui no Brasil, à tôa. Sua obra (sim, uma obra literária) ganhou o prêmio de não ficção Latinoamérica Independiente em 2022. De lá, tomou o mundo… bem, na verdade, rompeu os limites de seu país, foi traduzida para o português e cá está, já morando em lugar cativo e de destaque na minha estante.
Como sabem os que me acompanham aqui neste espaço (e no blog Ser Sustentável), meu objeto de pesquisa e de estudo é o meio ambiente. Ou o desenvolvimento sustentável, o ecodesenvolvimento… Enfim, a relação do homem com a natureza (evito falar ao redor, porque a expressão já pressupõe que somos o centro) é o que me interessa. Neste sentido, eu me pergunto o valor agregado de um livro que trata das plantas de forma tão poética, à causa do meio ambiente.
Contato. Este é o valor.
O autor tem um estilo quase de diário, em certo momento do livro, levando-nos a caminhar com ele, descobrindo com ele, no entorno de sua casa, as espécies que mais chamam a sua atenção. Aqui e ali ele encontra uma planta que merece uma história. E essa história se entrelaça com a dele:
“As sementes da laranjinha-do-mato ficaram em minha família por gerações e passaram de uma casa a outra, então, quando vejo os pássaros barranqueiros pegando as esferas alaranjadas na ntrada de serviço, imagino que a mão de minha avó ainda abençoe seeu legado através dos arvoredos em que os pássaros cumprem pontualmente sua tarefa de propagação”.
E assim ele vai atestando – sempre com o auxílio de autores que nos enriquecem o tempo todo, tanto que sugiro a leitura desse livro com lápis e papel nas mãos, para anotar as dicas – o imenso valor nessa relação do homem com a natureza, neste caso ilustrada pelas plantas. É quando eu me pego pensando se não é isto que falta para que, de fato, o aquecimento global, as questões climáticas, passem a ser vistos não como dados meteorológicos apenas, mas como fenômenos intrínsecos ao nosso cotidiano. “Um grau de envolvimento com a natureza que nos faz participar dela”.
Logo no início do livro, Efrén Giraldo confidencia aos leitores como nasceu a ideia do livro: foi quando, em agosto de 2020, por ocasião do 75° aniversário do bombardeio de Hiroshima, ele viu uma reportagem mostrando que árvores sobreviventes à tragédia provocada pelos humanos continuavam a florescer. É nessa resiliência (inexplicável?) que os ambientalistas acreditam quando informam, a quem interessar possa, que o planeta não precisa ser salvo. Ele vai dar seu jeito e sobreviverá a esses predadores humanos que aos poucos vai expulsar.
“A questão é como provocar uma ruptura radical de nossas rotinas para agenciar a transformação das instituições”.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.