Sobre os incêndios nas matas, a beleza ao redor e o remédio de Geiza
ipe rosa 2024

Como jornalista da área ambiental, eu deveria escrever sobre os incêndios e as queimadas, que deixam os céus de dezenas de cidades de São Paulo de cor cinza, espalham fumaça, amofinam a vida de citadinos e queimam bichos e plantas. Lá se vai parte de nossa biodiversidade, em fogo espalhado Brasil afora, porque a Amazônia também está em chamas. A polícia já se pôs ao encalço de alguns criminosos que se aproveitaram da secura da mata – evento climático quase tão terrível quanto as tempestades – para abrir mais clareiras.

Mas, infelizmente, além de compartilhar com os leitores o meu lamento, eu não teria nada de novo para acrescentar. Já vivemos isso outras vezes, e o processo é sempre o mesmo. As manchetes dos sites noticiosos e jornais ajudam a formar uma onda iracunda na maior parte da população. Famílias comentarão, amigos debaterão, mas… amanhã será outro dia. A chuva cairá, a fumaça vai se espalhar e, aos poucos, a notícia será esquecida.

O mal causado será sentido mais à frente, quando muitos ainda vão se espantar, como se espantaram com a fala da ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, alertando para o fato de que o Brasil pode perder o Pantanal até o fim do século.

Perder um bioma complexo e vital como esse é imensamente grave. Ouvi uma entrevista ontem, do cientista Carlos Nobre ao Brasil 247, na qual ele traçou um futuro bastante sombrio para a humanidade, já que o previsto é aumentar mesmo, cada vez mais, a temperatura do planeta.

Fiquei com a sensação de impotência, que já tem sido minha conhecida. Imagino que muitos que estavam ouvindo a excelente explanação do professor Carlos Nobre também tenham se perguntado: “O que podemos fazer?” “Ainda há tempo?”

Se couber a mim dar essas respostas, eu respondo: caso o homem passe a respeitar mais o ambiente em que vive, talvez, sim, haja tempo.

Mas escrevo esse texto ainda sob o impacto do acidente ocorrido ontem aqui na vizinhança. Uma árvore centenária caiu e machucou (pouco, ainda bem) um ciclista. Não estava ventando, não estava chovendo. O que aconteceu foi que alguns homens que cuidam do prédio construído em frente a ela decidiram tornar a calçada mais bonitinha. Fizeram um canteiro para a árvore. E, para que ela coubesse na noção estética, serraram-lhe as raízes. Simples assim. Respeito ao meio ambiente? Ali passou longe.

Por isso quero falar sobre vida. A vida que segue, a vida que se desmancha em beleza e se impõe, mesmo em ambientes hostis, em que nada no entorno garante sua permanência. A vida da natureza, a nação das plantas, a nação dos bichos. A vida de seres ativos, apesar dos humanos.

“O homem, ainda que se comporte como tal, não é de modo algum o dono da Terra, mas somente um dos seus condôminos mais desagradáveis e molestos” escreve Stefano Mancuso em “A Nação das Plantas” (Ed. Pergaminho).

Aprendi em outro livro – “Megaflorestas – Preservar o que temos para salvar o planeta” (Ed. Voo), escrito por John W. Reid e Thomas E. Lovejoy, que existe um besouro-caçador-de-incêndio. O bichinho usa detectores de infravermelho no tórax para encontrar árvores queimadas e se põe à caça logo após um incêndio. Neste exato momento, enquanto estamos impactados por causa da destruição causada pelo fogo em São Paulo e na Amazônia, seres vivos se refestelam com as iguarias tostadas. É a vida em ciclo.

E vida que se expande de vez em quando. Há uma semana, bem manhãzinha, em plena rua das Laranjeiras, dois ipês cor de rosa iluminavam meu caminho. Parei para respirar, observar, me encantar. Fiquei assim algum tempo.

Como eu estava sem o celular, mais tarde pedi a um amigo para fazer uma foto das árvores esplendorosas. Ele fez e depois comentou comigo:

“Nossa, nem tinha reparado. Que presente da natureza!” (A foto que ilustra este post é de Andre Balocco).

Muita gente passa e não repara. Muita gente nem percebe o quanto de natureza há em nosso cotidiano. Dos minérios às plantas, estamos implicados nessa invasão, depredação, e somos responsáveis, portanto, pela recuperação. Não dá mais para fechar os olhos a isso. Temos que fazer contato com as belezas, com as necessidades, com algumas soluções. Das mais simples às mais sofisticadas. Mas, sobretudo, as mais simples.

Estive acompanhando, virtualmente, um pouco da São Paulo Climate Week que aconteceu no fim do mês passado no Cubo Itau, espaço de palestras e conferências. Ouvi uma história linda, contada por uma beiradeira, Raimunda Rodrigues, co-fundadora da Mazô Maná, moradora da Reserva Extrativista Rio Iriri. Raimunda contou sobre a experiência de criar uma empresa junto com a comunidade e ampliou pensamento, falando de sua alegria ao ver pessoas, hoje, querendo aprender sua cultura.

Raimundo é mãe de Geiza, menina de 12 anos que aprendeu com a avó como identificar as ervas certas que curam determinados males.

“Quando alguém sente alguma coisa, ela vai lá e já sabe o que fazer. A gente até já deu um nome: o remédio da Geiza”.

Raimunda conta essa história e dá o tom certo, que quero focar para fazer a costura aqui nesse texto que se explica apenas pelo meu desejo de ir além. Quero falar sobre natureza, sobre humanidade, e a relação entre esses dois. Conta Raimunda:

“Geiza ficava com a avó desde 9 anos catando folha, e foi aprendendo. Eu aprendi também, por isso hoje criamos a Mazô Maná. Mas tenho irmãos que não aprenderam, porque não ligavam. E hoje eles estão vendo como esse aprendizado é  bom para a nossa comunidade”.

Esse contato, essa percepção, o respeito aos seres ativos que compartilham conosco o espaço, talvez seja a chave para o começo da mudança. Precisamos, todos, do remédio que Geiza aprendeu a fazer nutrindo amor pelo simples. O filósofo francês Michel Serres, em 2009 escreveu o livro “Contrato Natural”, uma espécie de resposta ao Contrato Social de Rousseau, do século XVIII. Serres lamenta que seu colega tenha feito um acordo em que a natureza tenha sido excluída. Agora as conseqüências desse ignorar a natureza estão visíveis.

Termino com o pensamento de Gilbert Simondon, conhecido como o filósofo da tecnologia. Ele diz:

 “O pajé é aquele que faz uma viagem, estabelece um tipo de diálogo com a natureza e traz desse diálogo uma resposta para a comunidade, uma solução para um problema que a comunidade não conseguia resolver. E o que faz a tecnologia senão um diálogo humano com a natureza para tentar resolver um problema?” 

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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