RECUPERAR SONHOS: ALDEAR, TERREIRIZAR E ESCARAFUNCHAR QUINTAIS
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Infâncias, Naturezas e Cidade: Percursos e Descobertas

Por Luiz Rufino

Do lugar que miro o mundo e busco cismar com suas coisas há um moleque que escarafuncha histórias no chão de um quintal imaginário. A cada descoberta se faz uma tira com um papel colorido e o ata em uma linha. Nó por nó se faz uma rabiola, essa invencionice é extensão do corpo dos moleques, dela se faz o céu colorido para os dias de festa, seja atada de ponta a ponta amarrada em um galho, pregada na parede ou serpenteando e debicando carregada pelos ventos no rabicho de uma pipa.


Com um pé no quintal e outro na aldeia me lembro que há um mito kaxinawá que conta sobre o nascimento das estrelas. Segundo a memória desse povo esses corpos de luz são na verdade butucas, olhos, de crianças que, após praticarem uma peraltice e não quererem ser reprimidas pelos adultos pediram que um passarinho amarrasse um fio na árvore mais alta da floresta. Com o fio atado no topo da árvore as crianças subiram e alcançaram o céu. Assim, quando suas mães gritavam para que elas voltassem, elas apenas miravam lá de cima e piscavam as butucas. As estrelas são butucas que da imensidão piscam e alumiam os sonhos da aldeia.


Plantando bananeira, pernas para o ar, uma mão no quintal, outra na aldeia e cabeça apontada para o terreiro me lembro que crianças nos ensinam a sentir outro tempo, aquele que não é meramente o das ampulhetas, da experiência individual ou do que se expressa como narrativa datada, mas o espírito que encarna nos grandes ritos que plantam a existência e dão liga a comunidade. Afinal, independente do que aconteça a vida é o rito que nos liga ao tempo. Assim, por que mesmo perseguindo um modelo de desenvolvimento civilizatório somos cada vez mais escassos de tempo e consequentemente de vida?


A cidade como arquitetura integrada a um ideal de civilização pode revelar as práticas que a forjam, assim como também o esquecimento de saberes que são cada vez menos praticados e são encurralados pelo dominação de um modo de vida que reivindica a marcação de um tempo único. Insensíveis as matas, os rios, os quintais e ao furdunço das crianças nossa relação com o mundo vai se restringindo a praticar a cidade de maneira desencantada. Dessa maneira, damos continuidade aquilo que o projeto dominante, que enxerga a vida aprisionada no humano e a natureza como mero recurso, vem investindo durante séculos.


Porém, como recuperar sonhos que parecem perdidos? Como frear a velocidade de um mundo que se paralisa na obsessão de grandezas cultivadas por coisa ausentes de vida? A minha cisma continua sendo a do moleque que escarafuncha histórias em um quintal. Na atualidade penso ser necessário uma rabiola de sonhos que enfeite, vadeie e pinte um céu de possibilidades, assim como as butucas dos curumins. A educação talvez possa cumprir essa tarefa, a de recuperar sonhos, alargar subjetividades e frear o desencanto. Nesse tom é urgente a tarefa de transgredir via a traquinagem. Em outras palavras, precisamos riscar com nossos corpos outras formas de inscrever a vida, afinal esperançar não é meramente um desejo, mas um necessidade, uma política para a emergência de outras presenças.

Aldear, terreirizar, virar bicho, recuperar sonhos, sentidos, brincadeiras, cantos, palavras de poder e afugentar a má sorte de uma boca faminta por escassez com o perfume das folhas colhidas no quintal e maceradas pelas mãos das crianças é uma tarefa urgente para a aprendizagem de outro tempo.


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