Ouvidos surdos ao toque de clarim
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Meus amigos estavam indignados, naquela linda manhã de sábado, quando nos encontramos aqui na rua. Sandra e Henrique tinham acabado de ver o corte cruel de um Oiti no terreno vizinho à sua casa, que pertence a uma escola. Uma árvore que sempre os acompanhou pela janela, possivelmente residência de inúmeros seres ativos, desses que grande parte da humanidade prefere ignorar ou que sempre se sente superior a eles.

Vou preferir não dizer o nome da escola porque, na esteira de uma denúncia, sempre haverá muitas firulas jurídicas. E, para mim, não é essa a questão. A lei dos homens permite que se remova “obstáculos naturais” que estejam “importunando” a vida dos homens. Já me enfezei com um vizinho que defendeu a retirada de uma amendoeira cujos frutos estavam machucando a lataria do seu automóvel.

No ano passado,  o prefeito Eduardo Paes – que tem feito uma administração muito decente – sancionou uma lei, de número 7.988, que autoriza os moradores da cidade a contratarem empresas autorizadas a realizar podas, corte ou remoção de árvores nas próprias calçadas. Isso não me parece razoável, nem um pouco.

Meus amigos apostam que o Oiti estava inteiro, saudável, florescente, e eu acredito nesta versão. Eles reclamaram com a direção da escola, que deu uma resposta que eles julgaram quase irônica: estava muito triste por ter sido obrigada a matar o Oiti, mas estava plantando outra árvore lá em Cachoeiras de Macacu.

Então tá, fica combinado assim, né?

A escola parece seguir à risca as leis do mercado de carbono. Segundo essa teoria, que se baseia na economia “as usual” para, magicamente, conter o aquecimento global,  uma empresa pode continuar  emitindo gases poluentes em Nova Zelândia se ela apoiar um projeto na Floresta do Congo (situação hipotética, só para ilustrar).

Peço vênia para trazer aqui um trecho do livro “Um planeta a conquistar”, da Ed. Autonomia Literária, cujo pensamento me parece mais realista do que essa alegoria amparada pela “mão invisível”:

“Para descarbonizar, precisamos reestruturar tudo, desde a forma como viajamos até os lugares onde moramos. Isso implica uma quantidade imensa de trabalho”.

E convido o leitor a uma viagem no tempo, para o início da era de consciência ambiental (estou sendo otimista), no final dos anos 60 e início dos 70, quando havia uma ingênua certeza de que os bens naturais eram infinitos. (Vamos deliberar aqui que a ficha chaiu pelo menos quanto à finitude dos bens, ok?). Árvores, rios, oceanos, bichos e terras seriam uma ‘dádiva divina’ para a humanidade. O pensamento ocidental assegurava que a natureza era uma espécie de ornamento para o homem, este sim a criação divina mais perfeita.

Não foi preciso muito para que a ciência conseguisse mostrar que não era bem isto. Em 1972, já quase no fim do período considerado pelo historiador Hobsbawn como “os anos dourados” (1946, pós-guerra imediato a 1975), as Nações Unidas se uniram na primeira Conferência do Meio Ambiente. Ler “Uma Terra Somente”, livro que representa uma espécie de ata daquela reunião, escrito por Barbara Ward e René Dubos, é fazer contato com as preocupações preliminares sobre o que hoje sabemos ser uma situação emergencial.

Antes de publicarem o livro, a pedido do então diretor da ONU Maurice Strong, Barbara e René submeteram o texto a mais de 70 representantes dos países que participaram da Conferência. No prefácio, os autores contam como foi difícil conciliar opiniões muitas vezes contraditórias. Alguns consultores acharam o tom muito catastrofista – e percebam que ainda não se falava em eventos extremos – enquanto outros queriam o contrário.

“Consultores gostariam que o livro emitisse uma advertência mais rigorosa – um toque de clarim – no sentido de que as atuais tendências ambientais não podem continuar por muito mais tempo porque a humanidade está no caminho da autodestruição”, escrevem.

O toque de clarim foi dado. Não somente em 1972, mas em 1987 com o relatório “Nosso Futuro Comum”; em 1990, quando o primeiro relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês) ressaltou que as mudanças do clima exigiam uma cooperação internacional; em 1992, com a Conferência realizada no Rio de Janeiro e, a partir de 1995, quando houve a primeira COP, que desde então é realizada anualmente.

Mas, para ouvir um toque de clarim, é preciso ter vontade. Não é o que vimos acontecer com os donos da escola que tiveram a coragem de arrancar um oiti. Uma rápida pesquisa sobre esta espécie originária da Mata Atlântica, dá conta de sua importância, sobretudo para as áreas urbanas: é muito utilizada na arborização de várias cidades brasileiras do Nordeste e do Sudeste. Sua copa frondosa, que dá ótima sombra, impacta positivamente sobre o meio urbano no período do verão. 

Uma das maiores autoridades do mundo em Neurobiologia Vegetal, o professor italiano e autor de vários best sellers Stefano Mancuso, em “A Planta do Mundo” nos traduz a devida importância das árvores no que ele chama de “metabolismo e fisiologia da cidade”.

“Como todo ser vivo, uma cidade tem necessidade constante de energia e de recursos para crescer, e é inevitável que produza descartes e resíduos. Para manter o funcionamento desse ciclo, a presença de plantas dentro do organismo urbano é essencial. Infelizmente, desse ponto de vista, a situação está longe de ser satisfatória. Basta olhar para as nossas cidades do alto para perceber que são espaços totalmente minerais, com edificações que ocupam até o último metro quadrado disponível”.

E mais não precisa ser dito. Pelo menos por enquanto.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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