Os humanos e seus direitos
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Se me permitem, volto ao tema dos direitos humanos.

Entre os tantos vídeos, textos, memes que recebo, como toda gente nessa nossa estranha era da comunicação abusada, invasiva… um deles me chamou a atenção. Mandou-me uma amiga, que nomeou o protagonista como Aliou Cassé, técnico da seleção de futebol do Senegal. Não consegui checar se esta informação está correta, mas a mensagem do vídeo merece que se abra um espaço para reflexão.

Trata-se de uma denúncia grave. E, infelizmente, não é nenhuma novidade:

“Cerca de 40 mil crianças trabalham em minas de cobalto na República Democrática do Congo ganhando menos do que 2 dólares por dia”.

O jogador ou técnico, vestido com a camisa esportiva, depois de fazer a denúncia, reproduz o discurso do médico ginecologista congolês Denis Mukwege, Prêmio Nobel da Paz em 2018. Mukwege pauta sua vida por denunciar violência contra as mulheres. Parte de seu discurso ao receber o prêmio, porém, foi também para denunciar os maus tratos contra os excluídos de seu país causado por garimpeiros inescrupulosos.

“O meu país é sistematicamente saqueado com a cumplicidade de pessoas que se fazem passar por nossos dirigentes. Saqueado pelo seu poder, riquezas e glória, saqueado à custa de milhões de homens, crianças e mulheres inocentes, abandonados em condições de extrema miséria, enquanto o os benefícios de nossos minerais acabam nos bolsos de uma oligarquia predatória… Hoje, graças às novas tecnologias de informação e comunicação, já ninguém pode dizer que “não sabia , disse o médico.

Congo é rico em minérios: em 2019, o país era o maior produtor mundial de cobalto, de tântalo, de cobre e de estanho. Entre 2015 e 2017, produziu 37 toneladas de ouro ao ano. Como se sabe, cobalto é um metal que apresenta característica ferromagnética e que, entre outras coisas, é indispensável para baterias de celulares.

Mas o Congo, segundo o último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) ocupa o 153º lugar, entre 191 nações, sendo que o primeiro lugar fica com a Suíça, país que oferece melhor qualidade de vida a seus habitantes. O paradoxo, entre um país com um solo riquíssimo e um povo cheio de privações, fica evidente. E é a marca de nossa era.

O vídeo mostra cenas de uma mina a céu aberto.  Numa das cenas, um homem põe um saco cheio de ouro sobre a cabeça de uma criança preta de corpo franzino, que sai cambaleando com tanto peso. É uma espécie de mula de ouro. Trabalha em condições de insalubridade absurda, com os pés na água, sem roupa adequada. Sabe-se lá o que come, se é que come.

A cena me remeteu ao livro “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (Ed. Boitempo), escrito por Friedrich Engels em 1845. Ainda um jovem de 24 anos, Engels não havia se encontrado com Marx, com quem desenvolveu uma extensa obra hoje reconhecida em todo o mundo. Filho de família rica, Engels decidiu sair de seu país, a Alemanha, e  conhecer Manchester, na Inglaterra, berço da Revolução Industrial.

No livro, Engels retrata o que viu nos bairros operários e nas fábricas, com uma sensibilidade extraordinária. Reproduzo aqui um trecho do livro, que me ajudará a completar meu raciocínio.

“Nas minas de ferro e de carvão trabalham crianças de quatro, cinco e sete anos, mas a maior parte delas tem mais de oiti anos. São ocupadas no transporte dos minérios do local da extração até a galeria em que o material é puxado por carros tracionados por cavalos ou até o poço principal, e também na abertura e fechamento de portões que separam as diversas seções da mina à passagem de homens e materiais. Desse ultimo trabalho encarregam-se habitualmente as crianças menores, que ficam, por doze horas ao dia, sentadas sozinhas em corredores escuros, estreitos e quase sempre úmidos, fazendo intermitentemente exaustivos esforços que não anulam o efeito embrutecedor da inação obrigatória entre eles”, escreveu Engels.

Cento e setenta e sete anos nos separam desse relato de Engels.  E nenhuma diferença há na maneira cruel de tratar aquelas crianças da maneira de garimpeiros tratarem crianças congolesas atualmente.

Cento e três anos depois das cenas descritas por Engels foi assinada, em Paris, no dia 10 de dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sim, para alguns serviu este documento. Mas, com certeza, não  para crianças congolesas. Sem mencionar outros tantos horrores que sabemos que ainda existem mundo afora.

Autor de vários livros que abordam o mundo do trabalho – entre eles “Capitalismo pandêmico” (Ed. Boitempo), o professor Ricardo Antunes conta que um museu em Manchester ostenta pequenas caixas feitas em madeira. Eram mini caixões, usados no séculto XIX para acomodar crianças nas fábricas nas poucas horas em que podiam dormir.

É necessário dar um fecho a este artigo. E não há moral nessa história. Dizer que a humanidade ainda está longe de respeitar até mesmo os seus semelhantes enquanto, paradoxalmente, se reúne em Conferência Mundial (a COP15, sobre biodiversidade, está acontecendo em Montreal) para baixar normas sobre respeito a outros seres vivos, é apenas chover no molhado.

Prefiro terminar com a mensagem do médico Denis Mukwege. Ele também pontuou, em sua palestra, o consumo exacerbado de cobalto e ouro.

“Todos nós amamos carros, joias e aparelhos eletrônicos, eu também tenho um smartphone. Esses objetos contêm minerais amplamente difundidos em nossa área e que muitas vezes são extraídos em condições desumanas por crianças e jovens submetidos a intimidações e violência sexual”. 

Para fazer algum sentido, que a gente consiga, com base nessas informações, refletir sobre nossos hábitos de consumo. Esta mudança de atitude poderá ajudar, a longo prazo, a mudar a situação das crianças congolesas. No entanto, não é garantia nenhuma de que elas passem a ser cuidadas como são cuidadas as crianças da elite ocidental.

Temos ainda um longo caminho a percorrer na estrada dos direitos humanos.

A foto que usei para ilustrar este texto é do site https://www.travelsafe-abroad.com/br/republica-democratica-do-congo/.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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