A rua era uma ladeira, e estávamos na descida.
Sapeca, ela vinha distraída. De vez em quando conseguia largar a mão da avó para se atrasar um pouquinho na caminhada.
A calça era de malha grudadinha, que mostrava o corpo franzino de poucos anos de vida. O cabelo estava em rabo de cavalo bem preso, recentemente lavado. Roupas simples.
E não é que a menina enfiou o nariz e a boca numa parede de hera? A avó, concentrada, em pele curtida, óculos grossos, semblante sem ânimo, não viu. Tentava entabular um diálogo com a terceira mulher daquele grupo à frente de mim, também uma senhora, pouco mais nova e mais ágil.
“Olha, vó!! Que plantas lindas!”, disse a menina.
Ufa!, pensei. Nenhuma abelha picou-lhe os beiços.
Cheguei um pouco mais perto, talvez no sentido de tentar livrá-la de outra travessura.
E ela me olhou quando ficou, num momento, uns dois passos atrás da avó. Cutucou a senhora, e enquanto me olhava, falou alto:
“Olha, vó! Olha pra trás!”
A menina era um arauto, um jorro de vida que tentava espalhar borrifadas de alegria no corpo já envelhecido de sua parente. Apontando para mim, exclamou:
“A moça estava fazendo ginástica!”
Eis a grande notícia daquele instante. A avó, relutante, olhou para trás. Lancei-lhe um sorriso de conivência. A menina gostou. E decidi dialogar com ela, num tom meio baixo, quase como se estivesse confidenciando…
“Isso mesmo, você acertou. Estava dando uma caminhada. E bem vi que a senhorita meteu a boquinha na planta. Sabe o que podia ter lá? Uma abelha! E a bichinha podia se espantar e dar-lhe uma mordida no lábio. Já pensou? Você ia ficar de lábio grande”.
Fiz voz de lábio grande, imitei um lábio grande. Não sei de onde tirei aquilo. E a menina se riu às largas.
Seguimos o caminho, ladeira abaixo, e ela, já conivente, quase uma amiga, danou a falar:
“Lá em casa às vezes falta água. E eu moro num lugar que tem mato. E é bom morar onde tem mato, mas é muito lá em cima”.
A avó, desta vez, balançou a cabeça, repreendeu:
“Para da falar, menina!”
Eu ia respondendo com a cabeça, dizendo “ah, sim, que bom”… Mas decidi respeitar o desejo da avó e parei de interagir. Até para evitar outra bronca.
Chegamos num ponto em que eu, então, decidi livrar a avó do incômodo que percebi que eu estava causando. Uma estranha conversando com a neta… Atravessei a rua, despedi-me, e a menina, olhando para trás, com o bracinho dando tchau, me gritou:
“Quero convidar você para o meu aniversário!!”
Permaneci na calçada do outro lado, afastei-me um pouco, mas acabou não tendo jeito: encontramo-nos novamente, desta vez na rua movimentada, num terreno plano.
A menina cutucou de novo a avó:
“Olha, olha! É ela outra vez!”
A avó olhou, desta vez abriu um sorriso conformado e eu me senti convidada a me aproximar. Perguntei o nome da guria:
“Helena”.
É o nome de minha mãe. Isto, de certa forma, deixou-me um pouco mais próxima. Perguntei-lhe sobre a festa de aniversário para a qual já estava convidada. Ela descreveu em detalhes: a fantasia é de princesa, vai ter até uma coroa na cabeça e, para comer, vai ter brigadeiro, cachorro quente pequeno e bolo…
Desta vez, a avó se sentiu à vontade para participar. Depois da descrição, ela me pediu para perguntar à neta quando vai ser a festa.
“Em junho! Vou fazer 5 anos”, disse-me espalmando a mão com os cinco dedos.
A avó riu. Eu gargalhei. Helena, não. Para ela, o mais importante era o convite, aquele momento.
Ali tivemos que nos separar de verdade. Eu, para um lado, Helena e sua avó para outro. Outros tempos, muitas vivências.
Este texto foi escrito por mim antes de o mundo ser agredido. Primeiro, por uma pandemia, que durante um tempo foi uma proibição para caminhadas ao ar livre, já que o vírus estava no ar. E depois, agora mais recente, a agressão vem sob uma guerra absurda, sem sentido, despropositada, inoportuna, como são todas as guerras.
Mas eu me lembrei da cena que descrevo neste texto quando, hoje pela manhã, levei meu vizinho de 6 anos à escola. Estava saindo de casa, percebi que a mãe dele estava atarantada e eu tinha mais tempo. Ofereci-me para percorrer com ele o caminho, dois ou três quarteirões. Ele gostou da ideia, desde que eu levasse junto meu cachorro. Assim foi feito.
Fomos andando devagar, às vezes devagar até demais. Pedro (o nome do meu vizinho) e Beto (o nome do meu cachorro) estavam em total sintonia. Eu, atenta apenas para evitar os riscos normais, tipo outro cachorro maior vindo do outro lado, por exemplo. Mas deixei que os dois vivessem seu tempo. E fui percebendo como perdemos a singeleza do tempo da infância quando nos aproximamos do mundo dos adultos. Ali não tinha nenhum dispositivo eletrônico mediando a relação entre bicho e ser humano. E os dois se entenderam. A guia às vezes se enroscava nas patinhas de Beto, e Pedro desfazia o nó com a máxima delicadeza, que Beto respeitava. Fomos seguindo assim. Um caminho que se faz em dez minutos normalmente, foi feito em quase meia hora. E foi tão bom.
Deixei para trás, naqueles momentos, o mundo em guerra, as crueldades antrópicas ao meio ambiente, o vírus que adoece, os políticos que aborrecem, o petróleo caro, os alimentos para a hora da morte. Ali, o que mais interessava era percorrer um caminho no tempo da infância e dos bichos. Sem intermediação. É assim que somos. E é bom lembrar disso de vez em quando.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.