Confiança. Escuta. Conhecimento de si e do outro. Superação de limites.
São apenas alguns dos muitos valores do circo.
Professora de circo desde 1990, quando começou a dar aulas no Teatro de Anônimo, Maria Angélica Gomes ensina a prática circense às crianças da Casa Monte Alegre há dez anos. E decidiu compartilhar, com riqueza de detalhes, sua experiência em textos que vamos publicar a partir de hoje, em três publicações.
Todo novo corpo é um novo sujeito no mundo.
(Marcus Vinicius Machado de Almeida, 2004)
Uma década de experiência com as crianças na Casa Monte Alegre, escola de ensino infantil, existente no bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro, há 25 anos. Escola/casa que nasceu do desejo de fazer uma educação com afeto, artes, corpo, potencializando e nutrindo adultos e crianças que por lá convivem. Após dez anos, vale registrar um pouco dessa trajetória. Acompanhando diversos grupos durante esse período – a cada ano convivo, em média, com 60 crianças, divididas em cinco grupos nas suas respectivas faixas etárias – percebo que o circo trouxe para a escola uma boa contribuição no que se refere à apropriação do corpo das crianças e seu entendimento no espaço.
O circo tem muito a contribuir para uma educação que busca pesquisa, desafios e novas conquistas. Minha prática como professora de circo vem desde 1990, com as aulas no Teatro de Anônimo[i], grupo do qual sou fundadora e com o qual trabalho até hoje. As aulas eram sempre direcionadas para um público que se alternava entre adultos e crianças a partir de 7 anos. Aliás, não conhecia, até então, a prática circense para crianças da primeira infância. Nesse sentido, já surgia aí um bom desafio pela frente.
Posso observar, ao longo da minha trajetória, como o universo circense contribui para uma educação mais lúdica, gerando potências para que as crianças sejam seres mais críticos, propositivos e tenham corpos mais livres e expressivos. Tornando-se indivíduos mais pensantes, sensíveis, e, assim, capazes de se inserirem na sociedade de maneira mais potente e criativa.
“É sabido que as artes do circo continuam atraindo a atenção de um público diversificado e que nas últimas décadas tem mostrado um significativo crescimento das experiências pedagógicas que fazem dessa linguagem uma opção de formação artística e um importante agente educativo” (BORTOLETO, 2019, p.4).
A Casa Monte Alegre é um espaço que aposta na criatividade, na escuta e na construção de uma metodologia a partir da vivência. Estou me referindo a um público de 1 a 6 anos, que praticamente a cada dia descobre algo novo. Tudo é bem intenso nesses primeiros anos de vida. É um período decisivo na formação da personalidade, caráter e modo de agir de uma pessoa. A neurociência afirma que experiências de natureza física, emocional, social e cultural permanecem inscritos por toda vida nas conexões sinápticas. A criança, como uma esponja, absorve e estrutura o caráter do futuro cidadão.
O circo, como na vida, tem sempre novos obstáculos a percorrer. Estamos constantemente no equilíbrio móvel de Piaget, que nunca será definitivo e sim provisório, pois o mundo está em constante mudança e nós, seres humanos inseridos nele, sempre encontraremos novos desafios. No circo é assim: hoje você consegue dar uma cambalhota, amanhã você a faz em dupla, com outra pessoa pulando por você. Depois passa a dar essa mesma cambalhota, que antes era em contato com o chão, no ar, como se estivesse voando. E por aí vai. Em movimento e aprendizagem constantes.
Equilíbrio sobre o macarrão
Para a aula de circo, carrego alguns valores e significados que são, em si, relevantes para o processo educacional. Assim, entramos em contato com as diversidades, técnicas, concentração, treinamento, conhecimento de si e do outro, sociabilização, confiança, além de superação de limites. Por meio das técnicas, se desenvolve a necessidade de escuta do outro, a confiança mútua para executar o movimento, a percepção do corpo no espaço. Depara-se com as impossibilidades de realização e a necessidade de busca de objetivos através de uma prática para a concretização deste.
Outra etapa que considero fundamental para a aula de circo é a criação. Através de espaços criativos, mostram-se diferentes formas para a mesma proposta, problematizando as questões de maneira verbal ou na prática com os alunos. Permitir e incentivar o processo criativo na sala de aula constrói pontes diretas e dá suporte para que a criança também construa e viva de forma transformadora dia a dia.
Queria fazer um parêntese para dizer que os primeiros anos na Casa Monte Alegre foram como professora e mãe. Ver-se nesse misto de funções, mãe e educadora, é um privilégio. Difícil falar de educação-corpo em movimento e não se referir também como pessoa em transformação. Aprendi muito com minha maternidade nesse espaço casa/escola. Aprendi vendo o quanto é fundamental ter a escola do seu filho como parceira, entender e aceitar o acolhimento de profissionais que estão atentos às conquistas diárias dele. É confortante observar que a equipe recebe esse ser que vai se entendendo como se expressar neste mundo, respeitando e proporcionando-lhe autoconfiança. Mesmo de perto fui aprendendo a me distanciar do papel de mãe, a controlar minhas angústias e meu tempo, muitas vezes, acelerado.
Somente observar que o tempo e aprendizado num espaço de educação infantil não se mede, se vive e se respeita sempre o novo, o que está por vir. Como é importante para a criança criar outras referências de conforto e confiança em sua vida, diferente de pai e mãe. Em algumas comunidades africanas, por exemplo, as crianças têm outras pessoas como referências que podem procurar quando necessitam, uma pessoa para falar quando passou do limite, outra pessoa para falar de seus medos e por aí vai. A criança é educada pelo coletivo, é um ser pertencente a essa comunidade. Sobonfu Somé[ii], em “O espírito da Intimidade”, diz que na tribo Dagara atuam com base na ajuda mútua, na qual os interesses estão sempre voltados para o coletivo. E os conflitos se resolvem numa espécie de “assembleias rituais”.
Meu tempo como professora também foi alterado; diminuir as expectativas foi logo necessário. Embora saiba diferentes técnicas do circo e posso oferecer aos alunos, ir no simples foi o melhor caminho para chegar às crianças. Foi como decupar um texto ou uma coreografia. Entendi o quanto era necessário esquecer o virtuosismo e o rigor que o circo traz. O lugar dos personagens heroicos, que fazem o impossível diante dos olhos dos espectadores, passou a ser mais fantástico e fascinante. Eles estão presentes, mas no mundo imaginário da criança. Lá também se faz magia, fazem saltos mirabolantes, tem acrobatas, contorcionistas, mestres de cerimônia, equilibristas, tem de tudo e muito mais que o universo do circo pode oferecer, pois demos asas à imaginação das crianças. A criança já escuta uma história ou a ideia de uma cena, visualiza e reinventa, parte para viver o presente, para o jogo da inocência. Os pratinhos de equilíbrio podem ser usados com um objetivo de equilíbrio propriamente dito, mas também podem se tornar um guarda-chuva, uma bengala de velhinho, um prato de refeição, pois, claro, as possibilidades são infinitas. Sobre isso, Sales (2010) nos traz uma contribuição entrelaçada com uma interpretação de Heidegger analisada pelo filósofo Jorge Larrosa:
A criança apodera-se do seu tempo e brinca. Ao brincar experimenta a liberdade: cria mundos, inventa modos, joga o jogo da vida. Não se trata de uma liberdade consciente que fundamenta a ação, mas de uma liberdade que se dá na própria ação e que é, portanto, a própria ausência de fundamento. Conforme a interpretação de Heidegger, analisada por Larrosa:
“A partir do lugar do salto, a liberdade aparece como o que reside no espaço do não-fundado” (LARROSA, 2002, p. 106)
“Isto é, na própria ausência do sujeito. A criança não é o sujeito que brinca livremente, ela é a própria liberdade. (SALES, 2010)
Trazendo o conceito de corporeidade, que é o conjunto de conhecimento que passa pelo intelectual, mental, físico, emocional e energético, nele, tem claro três linhas pedagógicas: histórico, social e cultural, importantes para considerarmos na construção de uma educação corporal. Nela, o corpo vive, experimenta, sente, possibilitando as transformações. Esse corpo em construção é atravessado constantemente pelo seu meio. Esse olhar, possibilita conhecer um pouco mais a criança e a compreender determinadas ações ou padrões que se apresentam em sala.
Nosso circo se constrói primeiro pela relação sutil, seja pelo olhar, pelo sorriso, pelo som, por uma música, por um movimento sutil, por valorizar um detalhe numa roupa ou uma fita no cabelo, por um livro de circo… enfim, esses pontos de partida são tão ou mais importante do que dar um salto mortal. Se faz necessário criar a relação tanto comigo, quanto com o objeto proposto ou com o próprio espaço. Estabelecida a relação, partimos para a brincadeira.
A criança, em sua pequena trajetória, ao se deparar com as linguagens circenses, ainda em seu equilíbrio precário, já parte para um entendimento mais amplo desse mundo e tem uma relação com seu corpo mais livre e expressiva, distinta de uma criança que a partir do momento que sustenta sua coluna, pouco volta ao chão ou não fica de cabeça para baixo. Colocar uma cambalhota na sua rotina, giros nos tecidos[iii] ou com gags[iv] ridículas do palhaço e ainda com pequenos objetos que somem numa mágica, contribui para um olhar com horizontes mais amplo, para a formação de seres mais felizes e inventivos.
O jogo facilita o aprendizado, permite que o que foi aprendido, não seja esquecido, pela própria repetição que a atividade evoca: também permite o aperfeiçoamento do aprendizado, pois a cada vez que se repete algo, treina-se, melhora-se o que foi feito, possibilitando, então, novas respostas, ainda mais elaboradas. (BORTOLETO, 2009, p. 19)
Estar de cabeça para baixo já traz benefícios à saúde e ao bem-estar comprovadamente. Nesta ação, oxigena-se o cérebro, reorganizam-se os órgãos abdominais, melhora o humor, aumenta a imunidade. Possibilita o pensar diferente. Referências de direita e esquerda, em cima e embaixo, mudam. Ao longo de minha experiência como professora percebi que todas as pessoas precisam de um tempo para que o cérebro se reorganize a partir desse novo ângulo de ver o mundo.
Parada de cabeça
No tecido, utilizo um nó próximo ao chão, para que sirva de apoio a diferentes partes do corpo. Com a exploração nesse aparelho, as crianças ganham tônus muscular, estimulam a criatividade, descobrindo maneiras de girar e apoiar. Brincam com a sensação de voar, pois o aparelho proporciona uma liberdade de balanços ousados. E a posição do casulo funciona para os bebês como um jogo de esconde-esconde além de dar aconchego. Essa posição põe a pessoa quase em posição fetal, acalmando o sistema nervoso. Alguns chegam a dormir.
Com a palhaçaria, aprendemos a ver o mundo ao contrário, o mundo dos erros e não dos acertos. Quando se percebe que erramos muito mais do que acertamos, fica mais fácil de nos aceitarmos como realmente somos, reconhecendo nossos ridículos e limitações. É possível compreender um pouco mais o outro e a vida pode seguir com mais flexibilidade e empatia. Existem gags tradicionais, cenas clássicas de palhaço, que utilizo algumas vezes nas aulas e, claro, ganham logo sua autenticidade quando passa para os corpos das crianças. É incrível a liberdade de expressão, descompromissada de autocensura. Coisa que, para o adulto, o percurso é as vezes doloroso, e é necessário repetir diversas vezes para chegar nessa liberdade e aceitação.
“A figura do palhaço está e sempre esteve em todas as sociedades, é um ser necessário a todo grupo social, é aquele que transgride a lei local. Nos palácios existia o bobo da corte, na ópera chinesa, tem o macaco. Nas tribos indígenas se tem o palhaço que já nasce predestinado a cumprir esse papel, como o Hotxuá[v]. (GOMES, 2011, p. 37).
A criança que já tem contato com essa figura, já brinca com seus ridículos, ri de si mesma na frente de seu grupo social, carrega menos traumas, menos monstros em sua vida.
Para mim, sendo palhaça, é uma aula constante acompanhar os passos da primeira infância, cada descoberta, cada olhar que brilha quando consegue vencer um obstáculo. É impagável cada gargalhada e aplauso que eles mesmos se dão. O processo de aprendizagem se dá pela maneira como cada criança elabora e assimila a informação com sua experiência anterior. As reações são imediatas, ação e reação, sem nenhum julgamento. Vamos construindo um circo totalmente autoral. Vygotsky afirma que a criança é inventiva e não só ativa, e a sua influência cultural age diretamente na sua construção.
Diferentes Pirâmides Acrobáticas
Nos primeiros anos, minha grande inquietação era o que fazer numa aula de circo com bebês de um pouco menos de um ano, com bebês que ainda nem andam. Demorei um pouquinho a assumir o berçário. Tinha receio de mexer em corpos tão frágeis, em ossos ainda muito flexíveis, é muita responsabilidade. Tinha dúvidas se, ao colocá-los num nó no tecido, por exemplo, não estaria adiantando o processo dele com a sua verticalidade, fazendo daquilo um estímulo excessivo para uma criança que ainda não verbaliza e só se expressa com o corpo e sons. Fui buscar apoio com as psicomotricistas de plantão da escola e elas me acalmaram, pois o aparelho não os limita, nem os aprisiona, eles o procuram como mais um objeto a seu alcance e cada um se aventura na sua medida.