Eis a última parte do artigo de Maria Angélica Gomes, professora de circo da Casa Monte Alegre e do Teatro de Anônimo. Agora a professor nos instiga a pensar na importância das brincadeiras para as crianças. No fim do texto, uma excelente biografia que certamente vai ajudar alunos e não alunos. Segue o texto:
Brincando com nossas expressões através do palhaço
A acomodação e a assimilação de Piaget interagem aí de forma bem presente. Ao entrar em contato com o objeto do conhecimento, eles retiram dele as informações que lhe interessam, deixando de lado as que não são tão importantes ou que ainda não conseguem executar e se adaptam, provocando uma transformação nos esquemas já conhecido. Assimilação e acomodação, apesar de distintos, são indissociáveis, se completam e nos atravessam durante toda vida, interagindo uma com a outra durante todo tempo de nossa existência.
Vou esboçar, dessa maneira, um recorte de como minha aula de circo tem se dado neste ano de 2019:
GRUPO DA MINHOCA – berçário (oito meses a dois anos)
Os investimentos nesse grupo durante as aulas, nesses primeiros meses, foram em confiança e “apresentação”. Percebo que para essa faixa etária, as referências de confiança ainda estão totalmente atreladas aos familiares, até porque a maioria está chegando num novo ambiente e o universo deles ainda é bem limitado; suas referências são apenas os familiares mais próximos.
A metodologia aqui se dá com muita ludicidade. O momento é de muita repetição nas ações para apreender as informações e é como se não enxergassem um ao outro em alguns momentos de excitação. É nítido o conhecimento pela experiência imediata que Piaget descreve, mas também vejo que já passaram do primeiro estágio do ato reflexo.
As cores e texturas são ferramentas que nos aproximam. Meu corpo em movimento, nos tecidos ou no colchão, gera olhares de interesse, mas o desafio é grande para a aproximação. Alguns precisam de mais tempo, reagindo com um choro ou apenas com o olhar, ou um sorriso no canto da boca, ainda não o suficiente para um deslocamento. Outros se lançam a esse desafio com uma entrega que, ao experimentarem, parece que não vão parar mais. E aí vem a etapa da repetição, de construir e estabelecer códigos entre a gente, novas comunicações vão surgindo no nosso espaço.
Os objetos como bolinhas chocalho de malabares, são super benvindos. É um brinquedo que confecciono, faz som e pode jogar para o alto, para o outro, tem cores fortes e servem para acompanhar músicas conhecidas por eles. E as bolas rolam na sala e estimulam eles a se movimentarem. A sala ganha em som, movimento e sorrisos.
Atualmente, já construímos o espaço de confiança e nos comunicamos mais. Todos já me conhecem e parecem entender do que vamos brincar quando nos encontramos. Os desejos começam a surgir. Uns gostam dos tecidos, outros dos coloridos das bolas, outros querem dar cambalhotas e o contato físico passa a ser mais presente. Já escalam o meu corpo e fazem rolamentos comigo. E desse modo, vamos caminhando e nos conhecendo um pouco mais a cada dia.
GRUPO GELATINA (3 anos)
Esse grupo é super afetuoso e disponível. Percebo que gostam muito da aula. Já verbalizam muito, pedem para fazer os exercícios que mais gostam.
Logo no início do ano preciso estabelecer um código nas aulas de tecido, já que não tem aparelhos para todos ao mesmo tempo, é claro. Combinamos que quem não está no aparelho, precisa observar quem está executando seus movimentos, assim aprendemos como cada um gosta de se mover nos tecidos, também cuidamos para ninguém ficar correndo pelo espaço quando tem alguém no aparelho para ninguém se machucar. Estipulo um tempo para todos explorarem o aparelho. Se demoro a trocar as pessoas nos tecidos, eles me avisam que está na hora de contar. Conto até cinco, que é o tempo deles se despedirem do tecido, finalizando seu movimento e trocar com um amigo ou amiga. No início sempre tem choro, resistência, mas, com o tempo, passam a entender que o aparelho não vai sumir, que não são donos do aparelho e todos têm o direito de brincar. Sabemos o quanto é difícil dividir, nesta idade algo que tanto gostam.
Adoram mostrar o que já aprenderam e se alguém não aprendeu, inventa alguma coisa para mostrar também, porque o que eles querem é participar, estar junto, se sentirem integrados em tudo. Eu, como palhaça, fico louca com tanto aprendizado, pois buscamos essa autenticidade, sinceridade e frescor para a cena.
Fazem parada de mão (ficando de cabeça para baixo na parede), cambalhotas. Adoram figurinos de palhaços e brincar com o nariz vermelho. Estão atentos o tempo todo ao que proponho e correm para fazer, já entendem a dinâmica sequencial dos movimentos e executam dentro dos limites da coordenação motora deles. É uma delícia de grupo. A disputa entre eles por um objeto ou pela minha atenção, às vezes gera conflitos, mas contornamos a situação conversando e logo estão rindo e brincando de novo.
GRUPO ESTRELA DO MAR (quatro anos)
Esse grupo é a trupe circense da escola este ano. Quanto potencial, interesse e vontade para brincar de circo. Entram nas propostas com muita disponibilidade e são super propositivos. Gostam de acrobacia, tecido, trapézio, malabares e o que mais surgir. Se a proposta de aula vier junto com uma história ou personagens, aí que a farra dura dias. A aula é intensa em sensações, discussões e muita energia. Já arrisco sequências acrobáticas sincronizadas e a dedicação para chegar a um bom resultado parte delas. Gostam de ensaiar durante a semana e na próxima aula, me mostram os resultados. Arrisco acrobacias coletivas, pirâmides humanas. Claro que dentro das possibilidades deles. Formamos várias imagens com um corpo apoiando o outro.
A linguagem do circo é bastante diversa, tem espaço para todos, desde o mais histriônico ao mais tímido. Funciona muito bem com esse grupo, em que há uma diversidade de interesses e potenciais, que ajudam explorar diferentes possibilidades de jogos e técnicas. Os personagens vão desde uma trapezista à mãe que não entra em cena, mas cuida do figurino. Do mágico ao vendedor de pipoca ou bilheteiro… Enfim, para que um espetáculo aconteça, a trupe tem diversos papeis, todos fundamentais para a realização de um espetáculo. Esse grupo verbaliza muito bem, responde corporalmente com muita liberdade de expressão. Já dá vontade de viajar mundo afora com essa trupe circense.
Queria aproveitar para registrar aqui uma passagem com esse grupo. Numa das dinâmicas que fiz esse ano foi organizar uma pequena exposição com fotos de palhaços do filme “I Clown”, de Federico Fellini. Um filme que teve uma grande importância na minha formação e da minha geração de palhaços(as). Tive contato com ele quando fui com meu grupo pela primeira vez para Europa. No Brasil não tínhamos muitas referências de palhaços, além dos nacionais. Até que ganhamos de um amigo, durante essa viagem, o VHS do filme. Foi uma mudança na nossa maneira de ver a palhaçaria.
Trata-se de um festival de palhaços em homenagem a Charles Rivel, palhaço já falecido, mas é um encontro com os melhores palhaços do mundo. Trouxemos esse filme e distribuímos para todos os amigos, fizemos cópia para Escola Nacional de Circo.
Dia de exposição de fotos de diferentes palhaços do filme “I Clown” e maquiagem
Enfim, esse parêntese é para deixar clara a importância desse filme para minha geração, e o quanto é respeitado. Então, levei a exposição de fotos para a escola, para as crianças verem as diferentes maquiagens e traços expressivos. A primeira coisa que uma aluna me perguntou foi: Cadê as palhaças? Abriu-se um chão na minha frente. Me considero uma palhaça feminista e nunca tinha percebido que nesse filme são só palhaços homens. Prometi a ela que faria uma outra exposição só com palhaças e falei com minhas amigas, que também não tinham esse questionamento com o filme, que traz para nós tanto aprendizado, independente do gênero, que deixamos escapar uma questão extremamente importante e que reivindicamos atualmente. Precisou uma aluna me apontar, me deslocar de uma referência e mostrar outra. As crianças estão muito antenadas com o momento que vivemos. Principalmente com tanta informação, que não passa só no presencial, mas no virtual. O mundo acelerou de uma maneira que as novas gerações apontam necessidades vindas de uma urgência, que parece que não damos conta.
GRUPO DOS NINJAS (5 a 6 anos)
Esse grupo é 100% energia. Muita testosterona junta. Grupo que tem apenas uma menina. Em alguns momentos preciso intervir para mostrar a eles que a menina precisa ter o espaço dela nos exercícios e mostro o quanto ela também é forte e esperta, porque, se deixar, às vezes eles a deixam apagada, como se não estivesse no espaço de aula. Esse acompanhamento também tem grande interferência da professora, que fica atenta todo o tempo com essa questão. Aproveito o nome do grupo para mostrar-lhes que os ninjas não sabem só lutar e que para chegar à luta, tem toda uma aprendizagem e isso ajuda bastante em propostas com energias diferenciadas. Ora puxo mais na concentração e desaceleração do coletivo, ora vamos para explosão, ora apenas uma leitura e construção de uma história que tenha haver com o circo… Afinal, os ninjas não só lutam, são pessoas concentradas, que usam seu corpo de diferentes formas, ora mais acelerado, ora mais equilibrado e leve; corpos que planejam suas ações. Enfim, tem sido prazeroso descobrir com eles esse universo.
Aproveito também para falar que a cultura oriental é muito antiga e todos buscam saber de suas origens. Daí, um gancho para trazermos histórias das famílias.
Destaco, aqui, uma das dinâmicas usada: Numa folha branca bem grande, 2m x 2m, cada um de uma vez, em posição fetal, no centro da folha, com um lápis de cera, ia desenhando uma linha até o corpo alongar no seu máximo, surgindo um desenho como fio condutor do nascimento até o dia de hoje. No final, fica registrado no papel uma mandala colorida, construída por cada um.
Lembrando da teoria de Piaget de que para todo ser humano ter a capacidade de adquirir conhecimento, basta ter contato íntimo com o conteúdo, fico pensando como o mundo seria se as pessoas pudessem viver práticas corporais, como a dança, receber massagem, cantar, fazer circo e expor seus ridículos. Seriam mais leves e felizes, e as singularidades despontariam com mais força significativa. É um privilégio para poucos, pensando na grande população que não tem acesso a essas riquezas.
Através dessa longa experiência, é possível afirmar que o circo, com seus princípios básicos, contribui para uma educação que se propõe a ter um olhar mais singular, de maneira prazerosa e lúdica. E que se faz necessário a quem está conduzindo, compreender a sociedade e sua organização e nos adaptarmos a ela, nos posicionando no mundo e se construindo enquanto ser humano, agente transformador e facilitador. Construindo um corpo vivo, saudável e atento a si e ao outro. Um retorno que tenho da escola ao longo desse processo é de que as crianças, hoje em dia, se machucam menos. A queda faz parte da experiência, mas se aprende a cair e tirar proveito do tombo. Os corpos estão mais atentos, se tornaram expressivos e mais felizes. A escola, portanto, propicia respeito à criança como co-criadora do processo educacional.
Referências Bibliográficas
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SALES. Anais do V Colóquio Internacional de Filosofia da Educação, UERJ, 2010.
[i] Teatro de Anônimo – Grupo de Circo Teatro fundado em 1986 e sediado no Rio de Janeiro. Estrutura sua prática através da montagem e apresentação de espetáculos, da qualificação profissional de outros atores sociais, além do aperfeiçoamento de técnicas e modelos autênticos de gestão e administração coletiva, baseada na solidariedade, criatividade e cooperação.
[ii] Sobonfu Somé é africana. Seu nome significa “A Mantenedora do Ritual”. Ela nasceu e foi criada em Burkina Faso, ex Volta Superior, na África Ocidental. Além disso, Sobonfu é membra iniciada da Tribo Dagara. Isso significa que foi ensinada pelos anciãos, que participou do ritual de iniciação tribal das mulheres e que passou pelos anos de orientação que seguem essa iniciação. Hoje Sobunfu e seu marido, Malidoma Somé, ensinam a ancestral sabedoria da sua tribo ao redor do mundo.
[iii] Tecidos: aparelho de circo utilizado na acrobacia aérea, fixado por um ponto, ficando pendurado verticalmente. O acrobata desenvolve nele sequências de movimentos e quedas de impacto.
[iv] Gags: sequências atabalhoadas de movimentos do palhaço(a), com intuito de contagiar o público com o riso.
[v] Hotxuá – Na tradição Kraô, é uma espécie de palhaço. Algumas pessoas têm o privilégio de serem escolhidas quando nascem, por um outro hotxuá, para levar o riso as pessoas. E será preparada desde pequena para se tornar um.
[vi] Sue Morrison – canadense, mestra em palhaçaria. Sua pesquisa é baseada na cultura dos índios nórdicos.
[vii] Angel Vianna é mestra, pioneira da dança contemporânea. Coreografa, dançarina e pedagoga. Provocadora, produz, cria e ensina dança. Uma pessoa inquieta com seu corpo e com seu tempo. É puro movimento.
[viii] Salto leão é um movimento acrobático, como uma cambalhota, em que no início do movimento se dá um salto.
[ix] Pantana é o nome dado à estrela no circo.
Maria Angélica Gomes
Teatro de Anônimo e Casa Monte Alegre
angelica@teatrodeanonimo.com.br