A história de um menino que descobriu o vento
O menino que descobriu o vento.

Quase todo mundo tem mantido os olhos vidrados na tela para acompanhar a elegância com que a ginasta Rebeca Andrade se desincumbe de tarefas dificílimas para o corpo. E vai sendo premiada, homenageada, ganhando a fama que merece. No setor esportivo, são muitos os exemplos de superação. E em tantos outros setores.

Vale lembrar Kamkwamba. Ele nasceu em 1987 no Malauí, país africano que ocupa o 171º lugar em desenvolvimento humano, segundo o relatório do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Menino curioso, afável, muito bem criado pelos pais, cuja vida nunca foi fácil. Como se pode imaginar, num país com baixa expectativa de vida, alta mortalidade infantil, Kamkwamba já podia se sentir um vitorioso aos 6 anos por conseguir ter à mesa, diariamente, a nsima (que se pronuncia sima), um bolo feito à base de fubá e água quente, ao qual se acrescentam molhos variados (mostardas, feijões, folhas verdes), dependendo do que se tenha na despensa.

Em 2011, chegou ao Brasil o livro “O menino que descobriu o vento” lançado pela Ed. Objetiva e que, já naquela época, ocupava a lista dos mais vendidos no jornal “The New York Times”.  Conta a história do menino que conseguiu, depois de frequentar clandestinamente a biblioteca da escola que o expulsara por falta de pagamento (US$ 80 anuais), com ajuda do livro “Using Energy”, fazer um moinho de vento que acionou uma bomba para captar água do solo ressequido da região onde morava.

A engenhoca permitiu que o pai de Kamkwamba, junto com toda a família, conseguisse romper uma violenta seca pós inundação que submetia os moradores de Malawi à fome e miséria sem nenhuma ajuda do governo.

 O jovem então tinha 14 anos e fez um moinho de cinco metros de altura utilizando uma bicicleta quebrada, uma pá de ventilador de trator, um velho amortecedor e árvores de eucalipto azuis. Depois de ligar o moinho de vento a uma bateria de carro para armazenamento, William foi capaz de alimentar quatro lâmpadas e carregar os telefones celulares dos vizinhos. Este sistema foi ainda equipado com interruptores de luz caseiros e um disjuntor feito de pregos, fios e ímãs. O moinho foi posteriormente estendido: passou a ter doze metros para melhor captar o vento acima das árvores. Um terceiro moinho bombeava água para irrigação.

Quem escreveu a história de William Kamkwamba foi o jornalista Bryan Mealer.  Quando o livro foi lançado, o rapaz do moinho de vento já tinha 24 anos, e estava, na época, cursando engenharia ambiental no Colégio Dartmouth, em Hanover, Estados Unidos, um dos mais respeitados do país. Já tinha feito palestras na conferência global TED, aprendeu o inglês, tornou-se conhecido em todo o mundo.  Mas sua velha aldeia, junto à família, continuou tendo importância vital para ele.

A história de Kamkwamba virou filme, foi produzido pela Netflix, que o exibe desde 2019. Chama-se “O menino que descobriu o vento” e foi dirigido por Chiwetel Ejiofor. O ator que representa Kamkwamba é muito bom, assim como todo o elenco. Para os corações mais sensíveis, é melhor pular a cena em que o menino encontra o cachorro morto de fome. Mas a narrativa se assemelha bastante à história real de Kamkwamba.

Kamkwamba estudou nos Estados Unidos, leu “O Anticristo” do escritor alemão Frederick Nietzsche e foi escolhido como um dos cem bolsistas para participar da reunião bienal de grandes mentes da TED, onde celebrizou a frase: “Eu tento, e consegui”. Tom Rielly, diretor da comunidade TED, encantou-se pelo rapaz e passou a ajudá-lo. Acompanhou-o a Malauí porque queria conhecer, in loco, o moinho de vento que deu fama a Kamkwamba. E quando viu a vida de privações daquela família e da região, Rielly se sentiu convidado a estender a ajuda: durante os sete anos seguintes seria responsável pela formação do jovem adulto.  Mas não o tirou do lugar onde nasceu e viveu: Kamkwamba estudou lá mesmo, numa escola na capital de Malaui, Lilongwe, e depois na prestigiada African Leadership Academy, na África do Sul.

Numa entrevista à revista do colégio Dartmouth publicada em 2011,  Kamkwamba disse que tudo o que queria era conseguir estudar para “resolver alguns dos problemas que o meu povo enfrenta”:

“Estou sempre pensando é em como eu posso aplicar o que estou aprendendo aqui para ajudar aqueles em casa”.

Já nessa época, com o adiantamento que recebera pelo livro, Kamkwamba tinha construído um poço em águas profundas com uma bomba movida a energia solar que toda a sua aldeia pode acessar e abrira uma fábrica de moagem de milho. William criou ainda uma associação sem fins lucrativos com a qual conseguiu patrocinar um time de futebol para a sua aldeia, o que praticamente acabou com os problemas de jovens que já estavam entrando em vícios.

Capa do livro.

A história de Kamkwamba é inspiradora sob diversos pontos de vista. Como a de Rebeca Andrade e tantos outros que conhecem superar as privações e trilhar um caminho diferente do previsto.  

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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