O devir-criança em três tempos: Heráclito, Nietzsche e Deleuze
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A inocência, o esquecimento e a ausência de julgamentos tornam possível uma experiência de luta, resistência e criação, em que o que está em jogo é o processo de transformação de todas as coisas e a afirmação da vida em sua força criativa. 

A criança ocupa um lugar de destaque na filosofia de Heráclito, Nietzsche e Deleuze. Nos três casos, a despeito dos diferentes desdobramentos, ela aparece vinculada à experiência do devir; ou seja, de um movimento de transformação que faz da existência um mergulho trágico no caos. Já que nada permanece o mesmo, o que resta é a leveza de um ser que brinca em sua inocência, esquecimento e vazio de julgamentos. Neste sentido é que se torna possível falar de um devir-criança. Trata-se de uma potência que permite pensar o convívio com as incertezas, sem se apoiar em modelos ou alternativas. 

 1- O devir-criança em Heráclito 

Dentre os filósofos da antiguidade, Heráclito se destaca como o filósofo do movimento. Sua famosa expressão “não é possível banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio” tornou-se emblemática quando se trata de pensar a noção de devir. É que para Heráclito tudo está em movimento e é justamente o movimento que determina a harmonia do mundo. O devir é uma questão cara para os gregos desde o surgimento da filosofia. Como conciliar o ser e a transformação? Como pensar a ideia de uma essência para as coisas e a possibilidade de mudança? 

Nisto consiste a importante querela entre Parmênides e Heráclito em torno da questão do ser e do não-ser. Mas antes deles Anaximandro, discípulo e sucessor de Tales de Mileto, já havia chamado a atenção para a diferença entre o limitado e o ilimitado. Se as coisas existem e podem ser afirmadas em seu ser, elas não deixam de ser atravessadas por um princípio originário que as criou e as sustenta, mas que não pode se confundir com elas: o apeíron (infinito, ilimitado ou indefinido). Trata-se de uma unidade primordial que está além de um elemento particular (finito, limitado ou definido) e que torna possível a multiplicidade através do seu movimento eterno. O apeíron é, pois, um princípio móvel e eterno que está presente em todas as coisas. Neste sentido, encontramos em Anaximandro a primeira expressão do movimento.

Como diz Bergson, “Anaximandro introduziu na filosofia a idéia de matéria indeterminada, a de movimento eterno, a de uma separação que consiste em uma especificação” (2005, p. 195). 

Para garantir o movimento, Anaximandro cria o princípio do ilimitado; ou conforme as palavras de Nietzsche

 para que o devir nunca cesse, é necessário que o ser originário seja indefinido (1995, p. 34). 

Mas a afirmação do devir em Anaximandro se dá em meio a um impasse; pois participar do devir é entrar na transitoriedade do ser e assumir o próprio aniquilamento. Ou seja, é a afirmação da própria destruição, portanto, do devir enquanto oposição ao ilimitado, visto que tudo se consome. Segundo Nietzsche, foi Heráclito quem iluminou a questão do devir tirando-o de uma experiência de punição quase que divina e justificando-o em sua própria força. Primeiro, rejeitou a dualidade proposta por Anaximandro entre um mundo físico (limitado) e um mundo metafísico (ilimitado). 

Depois, rejeitou a própria ideia de ser dizendo: 

Só vejo o devir. Não vos deixeis enganar! É à vossa vista curta e não à 
essência das coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no 
mar do devir e da evanescência. Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duração fixa; mas até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira vez (Cf. NIETZSCHE, 1995, p. 40). 


Há um jogo dos contrários, das forças contrárias que faz com que as coisas sejam afetadas e se transformem o tempo inteiro. O quente atinge o frio e vice-versa, o duro afeta o mole e vice-versa; uma luta constante a partir da qual nada permanece o mesmo. 

Diz Nietzsche:

Todo o devir nasce do conflito dos contrários; as qualidades definidas que nos parecem duradouras só exprimem a superioridade momentânea de um dos lutadores, mas não põem termo à guerra: a luta persiste pela eternidade fora” (1995, p. 42).

 Luta, relação de forças, afecções intensivas, encontros múltiplos — elementos da cosmologia grega. Tudo mergulhado num fluxo constante: devir e destruição; composição e decomposição. Assim é o conjunto de todas as coisas: “O uno é o múltiplo” (NIETZSCHE, 1995, p. 46).

 O mundo é luta e contradição; dor e sofrimento — caos. Mas na lógica do todo é pura harmonia. Daí Nietzsche concluir: 

Neste mundo, só o jogo do artista e da criança tem um vir à existência e um perecer, um construir e um destruir sem qualquer imputação moral em inocência eternamente igual. E, assim como brincam o artista e a criança, assim brinca também o fogo eternamente ativo, constrói e destrói com inocência — e esse jogo joga-o o Eão (Aiôn) consigo mesmo (1995, p. 49 e 50). 


Nesta filosofia da natureza de Heráclito, o devir joga com as forças contrárias como uma criança que brinca, sem que haja lugar para um julgamento moral.  Deleuze retoma o tema da inocência em Nietzsche e a filosofia. Para ele, não há o que condenar na vida porque tudo é múltiplo. A multiplicidade é a garantia da inocência, pois o que é mal aos olhos de um é bem aos olhos de outro. O julgamento moral é da ordem de uma cultura por demais humanista e localizada, pois uma cultura conectada com o devir veria pelo prisma do todo e estaria para além do bem e do mal. Neste sentido a “inocência é a verdade do múltiplo” (1976, p. 18). É o reconhecimento ou aceitação das forças que se movem no universo. Diz Deleuze: “É esta maneira de se  relacionar, de afirmar e de ser afirmado, que é particularmente inocente” (1976, p. 19). 

Não há depreciação mesmo do que é destrutivo, do que é devorador, pois tudo é movimento de composição e decomposição através da luta, das relações de força que traçam as linhas da existência. Afirmar a vida com toda sua inocência, aceitá-la tal como ela é, com toda a sua força e intensidade, é aceitá-la em sua dimensão trágica. Por isso que para Deleuze, Heráclito é um pensador trágico, pois “fez do devir uma afirmação” (1976, p. 19). Ao contrário de Anaximandro que opôs ao devir uma dimensão metafísica, mergulhando o devir na negatividade, Heráclito não vê existência fora do devir.

A inocência livra a criança de qualquer responsabilidade. O que ela faz, não faz por mal. Ela não pode ser condenada por seus erros, porque sequer há erro quando há inocência. O erro é fruto de uma consciência, ou melhor, de uma má consciência. Diz Deleuze: “No ressentimento (é tua culpa), na má consciência (é minha culpa) e em seu fruto comum (a responsabilidade)” (1976, p. 17). Mas a criança, livre de qualquer consciência soberana, vive liberta também do erro e da culpa; portanto, sem medo de errar. Ela simplesmente vive conforme suas forças. Sua inocência lhe concede a leveza da irresponsabilidade. Afirma Nietzsche: “Eu quis conquistar o sentimento de uma total irresponsabilidade, tornar-me independente dos elogios e da reprovação, do presente e do passado” (Vontade de poder, III, 383 e 465. Citado por DELEUZE, 1976, p. 17). 


Para Deleuze

a inocência é o jogo da existência, da força e da vontade. A existência afirmada e apreciada, a força não separada, a vontade não desdobrada, esta é a primeira aproximação da inocência” (1976, p. 19). 

Dizer sim à vida tal como ela é, sem depreciá-la; não separar a força dela mesma, exigindo que não aja como força — seria o mesmo que pedir à fraqueza que aja como força; não exigir da vontade que não tenha vontade, que não queira, como se fosse possível decidir não ter vontade. Mesmo a vontade de nada é vontade de alguma coisa. Nisto consiste a apropriação da inocência. 

Heráclito olhou profundamente, não viu nenhum castigo do múltiplo, nenhuma expiação do devir, nenhuma culpa da existência” (DELEUZE, 1976, p. 20). 

Há apenas o jogo feliz da criança. “A criança joga, retira-se do jogo e a ele volta” (1976, p. 20). Este é o jogo do tempo: arrastar todas as coisas promovendo encontros e variações. Afirma Heráclito: “O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá; governo de criança” (BORNHEIM, 1993, p. 39).

 O devir é, pois, o tempo da criança; tempo de mudança, de multiplicidade, de criação do diferente — uma força mobilizadora que joga mergulhada na inocência. A criança apodera-se do seu tempo e brinca. Ao brincar experimenta a liberdade: cria mundos, inventa modos, joga o jogo da vida. Não se trata de uma liberdade consciente que fundamenta a ação, mas de uma liberdade que se dá na própria ação e que é, portanto, a própria ausência de fundamento. Conforme a interpretação de Heidegger, analisada por Larrosa:

 a partir do lugar do salto, a liberdade aparece como o que reside no espaço do não-fundado” (LARROSA, 2002, p. 106)

 Isto é, na própria ausência do sujeito. A criança não é o sujeito que brinca livremente, ela é a própria liberdade.

Talvez a liberdade não seja outra coisa senão aquilo que se dá nessa experiência, na experiência dessa falta de fundamento (LARROSA, 2002, p. 107). 

É livre justamente porque não é, não tem um ser fixo, não se prende a uma identidade. O devir-criança é o ser aberto e livre. Diz Heidegger: 

Que diz Heráclito do aión? O fragmento 52 reza: a sina do ser é ser uma 
criança, que joga, que joga o jogo de tabuleiro; de uma criança é o reino. […] 
A sina do ser: uma criança que joga. (…) Por que a criança grande joga o jogo 
do mundo, essa criança vista por Heráclito no aión? Joga porque (enquanto 
que) joga. O ‘por quê’ desaparece do jogo. O jogo é sem ‘por quê’. Joga 
enquanto que (ao tempo que) joga. Segue sendo só jogo: o mais alto e o mais fundo” (A proposição do fundamento, p. 178. Citado por LARROSA, 2002, p. 108). 

O jogo é a liberdade da criança. E o devir-criança é o emblema da liberdade, sua condição de possibilidade. Devir e multiplicidade são dois conceitos entrelaçados e que estão presentes na própria afirmação. Afirmar é abrir-se para a multiplicidade e para a mudança. Quando se afirma se aceita; quando se diz sim para a vida isto quer dizer uma aceitação da vida em suas múltiplas possibilidades.

 O múltiplo é afirmado enquanto múltiplo, o devir é afirmado enquanto devir. É dizer ao mesmo tempo que a afirmação é, ela mesma,múltipla, que se torna ela mesma; e que o devir e o múltiplo são eles mesmos afirmação (DELEUZE, 1994, p. 29). 


Segundo Bergson, a guerra que engendra a harmonia estabelece também a mudança. Sendo assim, a mudança é a característica fundamental da própria vida. “A mudança não é apenas contínua, ela é a própria vida das coisas” (2005, p. 84). Para ele, Heráclito também foi o filósofo que mais problematizou a questão do movimento. 

O que marcou esses filósofos, e sobretudo Heráclito, o maior dentre eles, é o fluxo incessante das coisas, a mudança universal, o movimento, como ele próprio diz (2005, p. 85). 

Trata-se de um dinamismo radical “que admite a mudança universal, a  transformação a todo instante das coisas umas nas outras” (2005, p. 198).  Devir enquanto expressão da multiplicidade. Devir enquanto força da criação do diferente. Devir enquanto energia mobilizadora. Por que o devir se afasta de um ser imóvel e identitário? Porque ele diz respeito não ao que somos, mas ao que estamos em via de nos tornar. O devir é a lança que é lançada para outro lugar esperando que alguém a encontre e a arremesse novamente. O devir não define um destino, antes assinala que o destino de todas as coisas é a permanente transformação.

2. O devir-criança em Nietzsche 

Nietzsche entrou no rio de Heráclito e nunca mais foi o mesmo. Também criou para si um devir-criança e o denominou Zaratustra. Logo no início de Assim falou Zaratustra ele anuncia o movimento “das três metamorfoses”: o camelo, o leão e a criança. Mas a criança não é o fim, a meta, o resultado final; ela é o próprio devir, o movimento em toda a sua intensidade. Portanto, o devir-criança de Nietzsche é a recusa do que foi, do que é e do que será. É simplesmente a afirmação do vir-a-ser; isto é, do ser um outro que ainda não se sabe e que só pode se saber na própria experimentação. Conforme observa: 

Inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, 
uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim(1995 b, p.44). 

O devir-criança afirma a vida como processo de transformação e afirma a si mesmo como participante deste processo, recusando-se a se prender a um modo permanente. Com isto, goza de uma liberdade sem finalidade e, por isso mesmo, trata-se de uma experiência trágica. 

Para Nietzsche, ao lado da inocência encontra-se o esquecimento. Ambos são as marcas distintivas do devir-criança. Por um lado, como já foi dito, a criança não concebe o erro, pois o erro é fruto de uma consciência e a criança brinca mergulhada na inconsciência.

Criança que não tem ainda um passado para negar e que brinca, na sua feliz cegueira, entre as balizas do passado e do futuro. Um dia, porém, sua brincadeira foi perturbada e sobreveio logo ser ela arrancada de sua inconsciência” (2005, p. 71). 

Por outro lado, a criança não se prende ao ontem nem se mira no amanhã. Ela vive o hoje de maneira a-histórica. Uma vez que á capaz de esquecer ela não se aprisiona ao passado. O que Nietzsche afirma acerca do devir-animal se aplica ao devir-criança:

ele está inteiramente absorvido pelo presente, tal como um número que se divide sem deixar resto; ele não sabe dissimular, não oculta nada e se mostra a cada segundo tal como é, por isso é necessariamente sincero” (Idem.). 

Para Nietzsche, o esquecimento é um ganho e não uma perda. É uma força e não uma fraqueza. É uma arte que só pode ser realizada por quem sabe brincar. Não se trata de apagar o passado ou de renunciar a história. A questão é o olhar que se tem em relação a ela. No caso da criança, o que está em jogo é o esquecimento que permite nascer um novo olhar — o olhar da invenção. 

Neste sentido, uma aproximação entre Nietzsche e o poeta Manoel de Barros 
torna-se enriquecedora. É que o poeta escreveu a sua autobiografia e a intitulou de Memórias inventadas. Mas se são memórias, como podem ser inventadas? O que é inventado é da ordem do novo e não do que já existe. E quando se pensa em memórias nos remetemos às lembranças do que já existiu. Como pode então ser memórias inventadas? É que no universo da infância as coisas funcionam de outra maneira: tudo é inventado. 

Daí a célebre fórmula de Manoel: “tudo o que não invento é falso” (2004, p.  67) ou ainda a sua doce confissão: “noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento é mentira” (2003, p. 45). O valor está na invenção, na criação do novo. E como nada escapa a esta potência criativa, até as memórias são inventadas. Mesmo o olhar sobre o passado pode ser desdobrado em múltiplos sentidos. Há quem olhe para o seu passado e a ele se aprisiona; há quem tenha medo do passado e dele tenta fugir; há quem reverencie o passado de tal maneira que faz dele sempre maior que o presente. O passado pode ser uma grande prisão que impede de se viver o hoje. Nietzsche falava do perigo deste tipo de olhar para o passado: um olhar que apequena o homem. Mas o devir-criança olha para o passado com o olhar da renovação. Mais que isso, com o olhar da invenção. Pegar a massa do passado para cozer um novo alimento, com novas misturas, novos temperos, novas formas. Belo olhar! Belo uso das memórias! Um devir- criança — experimentar a potência inventiva da infância é o que também nos convida 
Manoel de Barros: 

Carrego meus primórdios num andor. 
Minha voz tem vício de fontes. 
Eu queria avançar para o começo. 
Chegar ao criançamento das palavras. (BARROS, 2004, p. 47) 

Há um ditado popular que diz: devagar com o andor que o santo é de barro. 
Manoel carrega seus primórdios num andor. Reverencia o início, o momento onde tudo principia; o lugar de onde tudo germina, onde tudo está em movimento e em plena o soa como a voz de uma criança. 

Espanto, curiosidade, inquietação, deleite e simplicidade. Há muita vantagem na busca dessa fonte; por isso ela é carregada, com muito cuidado, num andor. As crianças quando estão brincando levam muito a sério suas brincadeiras. Mas o santo que está no andor é de barro. É frágil. Basta uma pequena distração e ele se quebra. Mas distração também é coisa de criança. É o divertimento que mora no esquecimento. Então é certo que ele vai se quebrar. E eis que de repente os primórdios se espatifam no chão. Isso acontece quando ele quer ser maior do que aqueles que o carregam. O passado não pode se impor ao presente; não pode querer silenciá-lo; não pode servir de amarras para a força que quer se expandir e criar. Há uma certa desvantagem da história para a vida, lembra Nietzsche. Às vezes é preciso quebrá-la, parti-la ao meio, espedaçá-la para que não nos impeça de viver. Conforme a leitura que faz da Segunda extemporânea, para Charles Feitosa:

o excesso de memória pode trazer prejuízos para a vida singular ou 
comunitária. O esquecer é necessário para a vida”; mais que isto, é a 
condição para a vida, pois é “impossível viver sem esquecer… Um homem 
que nunca esquecesse seria como alguém que nunca dorme” (2000, p. 16).

 
Esquecimento como condição para a saúde, para a vitalidade, para o viver criativo. É o que afirma também Daniel Lins: 

Esquecer não é crime, diria mesmo que é a condição sine qua non à invenção de um pensamento-outro, pensamento curado da figura triste dos sobreviventes da memória, chamados também ‘tradicionalistas (2000, p. 46). 

Para ele, longe de ser uma falha da memória, o esquecimento é uma força ativa.

O esquecimento não é a falta de memória, não é a não-memória, não é o menos- memória. O esquecimento é como uma memória da vontade(2000, p. 51). 

Ou seja, que só lembra o que quer, o que é salutar. O esquecimento faz parte de uma memória seletiva. Cabe aqui ouvir as palavras do próprio Nietzsche: 

Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os 
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, 
graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, 
não penetra mais em nossa consciência (…). Fechar temporariamente as 
portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho (…); 
um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que 
novamente haja lugar para o novo (…) — eis a utilidade do esquecimento, 
ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem 
psíquica, da paz, da etiqueta: como o que logo se vê que não poderia haver 
felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. 
(…) Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecimento é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos” (1998, II, §1). 


O devir-criança é um movimento para frente, sem passado nem presente, que só enxerga o novo, o que está por vir. Não é mais o olhar da crítica ou da resistência, que diz não para as formas dominantes e que é representado em Nietzsche pela figura do leão. 

O leão encarna um tipo de crítica infinitamente mais destrutiva, mais 
desapiedada, mais dissolvente, mais cética e mais trágica que a do criticismo 
[kantiano](LARROSA, 2002, p. 115).

 O devir-criança só conhece o sim criativo. 

A criança não se pode antecipar, nem se projetar, nem se idealizar, nem se determinar, nem se antecipar. A criança não cumpre nada, não realiza nada, não culmina nada. É um limite, uma fronteira, um salto, um intervalo, um mistério (LARROSA, 2002, p. 116). 


O devir-criança é essa fenda aberta para o novo, para a invenção, para uma liberdade sem fundamento e sem finalidade. 

A criança abre um devir que não é senão o espaço de uma liberdade sem garantias, de uma liberdade que não se sustenta mais sobre nada, de uma liberdade trágica(LARROSA, 2002, p. 117). 

É a afirmação da potência criativa da própria existência. Vida como criação. 

A liberdade é a experiência da novidade, da transgressão, do ir além do que somos, da invenção de novas possibilidades de vida (Idem.). 

O devir-criança não pressupõe um sujeito criança que determina a ação; mas uma força criativa que está para além de qualquer sujeito ou de qualquer determinação. Falar, pois, de devir-criança é falar de uma dessubjetivação que remete a uma constante superação do que se é, mas não para atingir um modelo; antes, para ser um outro, para experimentar a diferença. 

A busca que o artista faz de sua própria infância está ligada, me parece, a uma vontade de desprendimento de si, de de- subjetivação, de alcançar um estado além ou aquém de si mesmo. Como se, só a partir daí, a partir de sua própria destruição como sujeito, pudesse surgir o novo (LARROSA, 2002, p. 119). 


Contudo, reforça Larrosa, não se trata de inventar o novo para se opor ao velho. A criança de Nietzsche não age em comparação com o que já existe; uma comparação temporal-cronológica. O tempo do devir-criança é outro: é Aion. É um tempo fora do tempo histórico: o tempo da própria criação.

 A criança é, em Nietzsche, origem, começo absoluto. E a origem está fora do tempo e da história (LARROSA, 2002, p. 122). 

A primavera da criança é o anúncio de um novo tempo cheio de possibilidades; o tempo sem marcação, sem começo e nem fim — o tempo da eternidade.

A origem tem a ver, sim, é com o novo enquanto intemporal, enquanto êxtase do tempo, enquanto instante ou eternidade, ou caso se queira, enquanto instante eterno ou eternidade instantânea (Idem.). 

O tempo perene do devir-criança é a grande sabedoria do mundo. Sabedoria primaveril da infância: o começo de uma nova jogada. 

3. O devir-criança em Deleuze 


A metamorfose arrastou Deleuze feito linha de fuga. Para ele o devir é uma experiência marginal que age rompendo com as estratificações e com as segmentações. O devir, ao rejeitar ser sugado pelo centro, procura as margens, as brechas, as fissuras que permitem escapar do mesmo. Neste sentido, o devir-criança passa pelo corpo sem órgãos da criança. É que a inocência e o esquecimento da criança fazem da sua existência uma experiência sem Deus. O mundo da criança é um mundo transvalorado; isto é, um mundo que não se prende aos valores pré estabelecidos, mas inventa seus próprios valores. Portanto, se não há valores determinantes, esvai-se qualquer possibilidade de julgamento. Da criança, do artista e do louco tudo se pode esperar, pois vivem um mundo sem Deus. E sabemos, com Dostoievsky, que se Deus não existe, tudo é permitido. Na ausência de Deus a criança potencializa sua existência. Ela fantasia, cria um mundo que é só seu; fala o que pensa e faz o que quer; troca de papéis como troca de roupa. No seu mundo não há lugar para o certo e o errado. 

Quando Deleuze trata do conceito de corpo sem órgãos (CsO), faz uma 
referência direta a Artaud e, mais precisamente, ao seu texto-manifesto Para acabar com o juízo de Deus. Mas não se trata apenas de uma questão sacra, de acreditar ou não em Deus. O juízo de Deus é coextensivo a toda forma de governo sobre o outro; portanto, refere-se a uma relação de poder cuja configuração aponta para o domínio sobre o outro e seu controle. Sendo assim, o devir-criança em sua relação com o CsO fala de uma experiência do que não tem governo nem nunca terá. Um modo de vida anárquico e libertário que reconhece muito mais a interferência de forças múltiplas do que de uma instituição, seja ela pessoal ou coletiva. Neste sentido, a ideia de Deus consiste naquilo que institui, que determina, que delimita, que controla. Mas também a idéia de Deus introduz no coração do homem o sentimento de uma dívida infinita. A partir do pecado original e de sua redenção na cruz toda a raça humana deve um favor a Deus. Esta é a condição do julgamento: 

a consciência de ter uma dívida para com a divindade, a aventura da dívida à medida que ela mesma se torna infinita, portanto, impagável(DELEUZE, 1997, p. 143). 

Deus como sinônimo de julgamento; ou seja, o que quer que se faça sempre haverá um olhar de fora pronto para observar e julgar, ou conforme as análises de Foucault, para vigiar e punir. 

Mas poderia o homem viver sem instituições ou fora delas? Deleuze já havia 
chamado a atenção para a necessidade de instituições e da sua relação com os instintos mais básicos. As instituições são um modo de satisfazer os instintos: “o dinheiro livra da fome, com a condição de se tê-lo”; “o casamento poupa do trabalho de se procurar um parceiro” (2006, p. 29). 

Ao contrário da lei que limita as ações, as instituições as organizam sendo, portanto, inventivas. No entanto, Deleuze assinala que “

se é verdade que a tendência se satisfaz na instituição, a instituição não se explica pela tendência” (2006, p. 30)

Ou seja, não há entre instintos e instituições uma continuidade necessária, uma conformidade espontânea, um casamento sempre ajustado. 

O desejo de abrir o apetite não explica o aperitivo, porque há mil outras maneiras de abrir o apetite (Idem.). 

O problema surge quando a instituição detém a forma de satisfazer a tendência, quando ela monopoliza a resposta ao instinto, quando ela condiciona e limita a experiência. Neste caso, “a tendência é satisfeita por meios que não dependem dela” (Idem.); por meios considerados ideais, que já estão cristalizados no corpo social e que não aceitam conviver com outros meios. Então, o problema não é com os deuses, mas com o Deus que representa uma única forma de julgamento, uma única maneira de 
avaliar, enfim, uma verdade suprema. 

A instituição social remete-nos a uma atividade social constitutiva de modelos dos quais não somos conscientes, e que não se explicam pela tendência ou pela utilidade (Idem.). 

Ao invés de meio a instituição cumpre o papel de fim em si mesma a partir da qual as tendências devem se enquadrar. A instituição modela, impõe parâmetros, estrutura significados. De expressão dos instintos ela se torna uma prisão para os instintos. 

Toda instituição impõe ao nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntárias, uma série de modelos, e dão à nossa inteligência um saber(2006, p. 31). 

Em outras palavras, a instituição é uma forma de poder que, aliada  ao saber, produz identidades fixas, sejam pessoais ou coletivas. Afirmar um devir-criança é pensar uma experiência para além das amarras da instituição. Mas isto não significa um fora do poder. Não existe um fora do poder. Se há uma luta ela se dá em meio às relações de poder. É de dentro que se mina a estratificação. Não é opondo uma forma à outra, mas instaurando uma fissura que permita a variação acontecer, isto é, a desterritorialização. Resistir ao poder não significa ir contra ele, não significa se opor ao poder, colocar-se do lado de fora do poder; mas, de dentro, nas próprias relações de poder, fazer com que se prolifere as variáveis. 

Na palavra de ordem, a vida deve responder à resposta da morte, não fugindo, mas fazendo com que a fuga aja e crie (…) — transformar as composições de ordem em composições de passagens” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 58 e 59). 

Por isso o devir-criança não é um contra, mas um entre. Ele é a fenda e não a alternativa. 

Diz Deleuze: “As crianças são rápidas porque sabem deslizar entre” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 42). E ainda: 

A única maneira de sair dos dualismos, estar-entre, passar entre, intermezzo, (…) não é criança que torna-se adulto, é o devir-criança que faz uma juventude universal” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 69).

 Não se trata, pois, de uma luta contra o poder, mas a favor da vida em sua multiplicidade e em sua força de variação. Por isso que, para Deleuze, o devir é uma experiência que se coloca à margem. É uma experiência subterrânea no sentido de forças invisíveis que não podem ser capturadas por um centro de poder. Por isso que o devir é sempre um devir menor. O menor aqui não designa diminuição, falta ou pobreza. Se é possível falar de uma pobreza na condição de menor, essa pobreza diz respeito à possibilidade de não de fixar, de não ter terra, de não ter chão —

 essa pobreza não é uma falta, mas um vazio ou uma elipse que faz com que se contorne uma constante sem se engajar nela, ou que se aborde por baixo ou por cima sem nela se instalar (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 50). 

A condição da pobreza sinaliza o desapego, portanto, um estado de liberdade. Assiste-se, dos dois lados, a uma recusa de pontos de referência, a uma dissolução da forma constante em benefício das diferenças de dinâmica (Idem.). 

É por isso que é possível falar de um devir-criança mesmo em relação ao adulto, pois não se trata de um decalque, de uma transposição, mas de um encontro de potência, de variação de intensidades, de simbiose de mundos. Mas se é possível falar do devir enquanto resistência, esta resistência é apenas secundária. Ela é um efeito de superfície; pois o devir se afirma na invenção e na própria afirmação. Por isso ele é também revolucionário, uma vez que não pretende se limitar ao que já existe nem legitimar o que já está dado.

 Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 10).

 Ele tem mais a ver com linhas que nos atravessam, forças que nos afetam, enfim, devires que nos arrastam para outros lugares e dissolvem nosso chão, nosso território — pura desterritorialização. Por isso o corpo do devir é o corpo sem órgãos. Com o CsO não há falta nenhuma, mas apenas uma força transbordante, um excesso, um fluxo, uma enxurrada. Ele é uma prática, um exercício de experimentação e de dessubjetivação (Cf. DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 21 e 22). 

O corpo sem órgãos do devir-criança é a abertura para a passagem da invenção. Reinventar o papel dos órgãos, embaralhá-los, confundi-los para por em jogo, em movimento novas composições que acentuem a riqueza produtiva da vida. “Por que não caminhar com a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 11). Dar novos usos às palavras velhas. Novos sentidos aos mundos já existentes e criar outros tantos. Para isso é preciso esquecer o sabido, esvaziar-se do conteúdo apreendido. 

Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide” (Idem.). 

Dizer não ao passado que tenta se impor, às tradições que fazem de tudo para se preservarem, à voz que vem do alto, aos valores eternos, ao mundo das idéias, a toda transcendência que defende uma verdade soberana. 

Enfim, dizer não ao juízo de Deus. A interpretação remete a um significado já existente, enquanto a experimentação remete ao novo que está por vir. Estar preso ao passado, ao sabido, à legitimação do que já se sabe é mortificar a própria existência, é tirar-lhe seu vigor, sua juventude, sua meninice; é perder o sorriso de criança que expressa a alegria de viver, de dançar, de brincar, de imaginar, de criar. Experimentar é cultivar encontros. Experimente este livro! Experimente este filme! Experimente esta criança! Nada mais que encontros. Encontrar e deixar-se encontrar. A experimentação exige atenção, exige cuidado para que o CsO que está sendo fabricado não se transforme em um corpo canceroso. 

Como criar para si CsO sem que seja o CsO canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um drogado, de um paranóico ou de um hipocondríaco?(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 26).

 Experimentar sempre com prudência. A prudência não tem a ver com o passado. Algo do tipo: alguém já experimentou isso e viu que não dá certo? Não é a experimentação disso ou daquilo, mas a experimentação da própria intensidade. Encontramos várias pessoas ao longo de um dia; muitas são indiferentes, já outras nos afetam. O jogo dos afetos tem a ver com a intensidade de cada encontro. Experimenta-se pois as intensidades. Sendo assim, não se encontra nunca pessoas ou coisas, mas forças. Os encontros nunca são pessoais, mas encontros de intensidades. Quando o encontro é 
conduzido por e para um CsO ele é cheio de intensidades. Por isso o CsO é o ovo. 

O ovo designa sempre esta realidade intensiva, não indiferenciada, mas onde as coisas, os órgãos, se distinguem unicamente por gradientes, migrações, zonas de vizinhança (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 27).

Encontro uma criança; não é a criança pessoa, nem a recordação da própria infância, mas uma criança enquanto força viva — um devir- criança.

 O CsO é bloco de infância, devir, o contrário da recordação de infância (Idem.). 

A diferença está no artigo. O artigo indefinido não indica uma coisa ou pessoa (extensão), mas um campo de forças (intensidade). Daí Deleuze afirmar que o “artigo indefinido é o condutor do desejo’ (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 28). 

Desejar o mundo infantil não significa que se está regredindo ou fugindo da própria realidade, mas constituindo para si um CsO em que a força de uma criança pede passagem. 

O CsO é desejo, é ele e por ele que se deseja. (…) Há desejo toda vez que há constituição de um CsO numa relação ou em outra (Idem.). Deleuze refere-se ainda ao devir como encontros nupciais que se dão entre as coisas; como, por exemplo, o encontro entre a vespa e a orquídea, entre o carrapato e o cachorro, entre o homem e a criança. As núpcias não se reduzem a um par, a uma máquina binária do tipo macho e fêmea, homem e mulher, adulto e criança; elas são mais uma conspiração, uma possibilidade de encontros, mesmo os menos comuns. São capturas; dupla captura entre dois reinos distintos. O encontro da vespa e da orquídea faz parte de um mesmo devir em que:

 “a vespa torna-se parte do aparelho reprodutor da orquídea, ao mesmo tempo em que a orquídea torna-se órgão sexual para a vespa” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 10). 

Há uma simpatia, uma atração dos corpos, uma sede de amizade e convivência. Manoel de Barros diz: “Queria propor o enlace de um peixe com uma lata” (BARROS, 2003, p. 39). É que as coisas do mundo são cheias de afetos e se definem pela capacidade de afetar e ser afetado. Tudo faz parte de um universo em relação, dos encontros que produzem alegria ou tristeza. Devir enquanto afetos que se formam no encontro.

 Os afetos são devires: ora eles nos enfraquecem, quando diminuem nossa potência de agir e decompõem nossas relações (tristeza), ora nos tornam mais fortes, quando aumentam nossa potência e nos fazem entrar em um indivíduo mais vasto ou superior (alegria) (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 73 e 74). 

Somos afetados a todo o momento; mas não sabemos nem como, nem quando, nem mesmo por quem o nosso corpo será afetado. É tudo por conta do devir. É tudo um devir, um movimento sem escala. Mas ao sermos afetados, enfraquecemos ou nos fortalecemos. A vida passa e se expande ou ela é retida e se contrai. Agimos e criamos ou mergulhamos na inércia e sucumbimos. Os afetos estão presentes em tudo e são eles que definem a nossa relação, nossos desejos, nossas ações. Diz Deleuze: 

Os corpos não se definem por seu gênero ou sua espécie, por seus órgãos e 
suas funções, mas por aquilo que podem, pelos afetos dos quais são capazes, tanto na paixão quanto na ação. Você ainda não definiu um animal enquanto não tiver feito a lista de seus afetos. Neste sentido, há mais diferença entre um cavalo de corrida e um cavalo de trabalho do que entre um cavalo de 
trabalho e um boi (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 74). 


O devir é o que estabelece uma relação afetiva com as coisas. Não se trata de filiação, mas de alianças. Ele é da ordem da aliança. Se a evolução comporta verdadeiros devires, é no vasto domínio das simbioses que coloca em jogo seres de escalas e reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 19). 

Assim sendo, um devir-criança diz respeito à simpatia que se tem com uma força molecular que remete ao infantil, ao primaveril e que sequer se reduz a qualquer criança em particular ou à sua representação molar. Deleuze esclarece: 

Sim, todos os devires são moleculares; o animal, a flor ou a pedra que nos 
tornamos são coletividades moleculares, hecceidades, e não formas, objetos ou sujeitos molares que conhecemos fora de nós, e que reconhecemos à força 
de experiência, de ciência ou de hábito. Ora, se isso é verdade, é preciso dizê- lo das coisas humanas também: há um devir-mulher, um devir-criança, que não se parecem com a mulher ou com a criança como entidades molares bem distintas (ainda que a mulher ou a criança possam ter posições privilegiadas possíveis, mas somente possíveis, em função de tais devires) (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 67). 


Para ele as crianças extraem todas suas forças do devir molecular que elas fazem passar; devir-criança tanto do adulto como da criança. 

A criança não se torna adulto, mas é o devir-jovem de cada idade. Saber envelhecer não é permanecer jovem, é extrair de sua idade as partículas, as velocidades e lentidões, os fluxos que constituem a juventude desta idade(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 70). 


Deleuze chega a se referir ao devir-criança como uma força cósmica. 

A obra gaguejante de Biely, Kotik Letaiev, lançada num devir-criança que não é eu, mas cosmos, explosão de mundo: uma infância que não é a minha, que não é uma recordação, mas um bloco, um fragmento anônimo infinito, um devir sempre contemporâneo (DELEUZE, 1997, p. 129). 

A questão gira em torno das combinações variáveis possíveis de serem feitas no universo; as conspirações que tornam algo próximo do outro. Próximo não no sentido físico ou espiritual, mas no sentido dos afetos. 

Daí a força da questão de Espinoza: o que pode um corpo? De que afetos é ele capaz? (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 73). 

Tudo acontece no encontro dos corpos. Daí Deleuze concluir que 

um animal se define menos por seu gênero ou sua espécie, seus órgãos e suas funções, do que pelos agenciamentos nos quais ele entra” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 83). 


Por isso que o devir não é imitar. Não é o homem querer ser uma criança, mas é uma relação de afetação mútua entre ele e a criança em que ambos se transformam, em que um se alimenta do outro provocando o que Deleuze chama de evolução a-paralela: 

os dois formando um único devir, um único bloco, uma evolução a-paralela, de modo algum uma troca, mas ‘uma confidência sem interlocutor possível (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 11). 

O encontro não é uma troca, mas uma mistura, uma vizinhança. Não há uma negociação, mas uma conspiração, uma confidência, um segredo, uma revolução silenciosa. 

Em suma, uma amizade: 

uma criança molecular é produzida… uma criança coexiste conosco numa 
zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos — contrariamente à criança que fomos, da qual nos 
lembramos ou que fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é o futuro 
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 92).


Três filósofos e algumas combinações. Heráclito e a inocência da criança que 
joga. Que joga livre e inocentemente o jogo da vida em sua multiplicidade. Nietzsche e o esquecimento da criança que esquece para criar. Esquecer é preciso para que o novo seja possível. Deleuze e a criança do corpo vazio de órgãos e pleno de experimentação. Experimentar os encontros para que os afetos tragam novas alegrias. Três filósofos em três tempos e em três formas de devir-criança que se entrelaçam no pensamento que cada qual, a sua maneira, faz bailar: a própria experimentação do devir-criança em cada 
um. 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______. Memórias inventadas. A infância. Rio de Janeiro: Record, 2004b. 

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BORNHEIM, Gerd A. (org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1993. 

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Semeion, 1976. 
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Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 

Márcio Sales da Silva possui Doutorado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, 2001) e Licenciatura em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, 1999). É professor titular do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ). Atua na área de Filosofia e Filosofia da Educação, com ênfase em Filosofia Contemporânea e sua relação com a Educação, a partir dos seguintes temas: modos de subjetivação, filosofia dos encontros, filosofia da diferença, antropofagia, caosmofagia, Nietzsche, Deleuze e Foucault.

Fonte: Anais do V Colóquio Internacional de Filosofia da Educação, UERJ. 7 a 

setembro de 2010

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