Em clima de festa falamos com algumas figuras que fazem do Carnaval em Santa Teresa o carnaval das crianças, como a atriz e cantora Bárbara Vento, a pesquisadora e brincante Juliana Manhães, a artista circense Maria Angélica Gomes, o trombonista Juba e o sanfoneiro Lars, entre outros que com seus coletivos têm marcado arte e cultura popular na cidade.
Por Ana Lobo
O carnaval da Monte Alegre já é tradição no bairro de Santa Teresa e em 2020 ele acontece na quinta-feira anterior ao carnaval, exatamente no dia 20 de fevereiro. Nosso bloquinho brincante é para os grandes e os pequenos caírem na folia! A concentração acontece na Casa Monte Alegre às 17:00h e segue até o Centro Cultural Laurinda Santos Lobo onde teremos nosso Baile de Carnaval. Participam dessa festa o Carimbaby, Dj Mam, Juliana Manhães, Cacau Amaral (As três marias), Mig Martins e Cris Campos.
Barbara Vento é cantora do Carimbaby, educadora da Casa Monte Alegre e mãe do Mathias. Ela conta pra gente um pouco sobre sua história, sobre sua ligação com a cultura popular e como foram seus últimos carnavais com seu filho.
Barbara, a cultura popular tem uma forte presença na sua vida não é? Quando essa sua experiência com cultura popular deságua no carnaval?!
A cultura popular tem uma presença muito forte na minha vida graças a meu pai, Francisco Rocha. Ele é mestre bonequeiro, diretor de teatro e poeta. Desde a infância, lá em casa, podia faltar muita coisa, mas nunca faltou um pandeiro, microfone, violão. Meu pai criou os quatro filhos. Ele é piauiense, minha mãe é paraense, é uma família que teve muita influência das avós. Minha avó paterna é maranhense, e minha avó materna é de Olinda. Para mim a cultura popular é um resgate quase que espiritual.
No Pará, aos 10 anos, eu ganhei um campeonato dançando Carimbó. Quando fui pro Amapá tive a oportunidade de conhecer uma cultura quilombola com influências do Caribe. Marabaixo, batuque, os rezos, tudo isso é muito precioso. Vivi minha adolescência no Amapá, minha infância no Pará e nesses lugares eu percebi o que eu queria fazer. Viajei o Brasil com o Tá na Rua e me apaixonei pelo frevo, maracatu, jongo. As manifestações populares são a madeira da fogueira entende?! Essa minha fogueira de São João, para fazer uma menção direta a minha ancestralidade, a minhas avós e o que elas representam.
O carnaval chegou na minha vida pelo teatro. Minha família não é muito carnavalesca, lá de casa eu sou a que mais ama carnaval. Aos 11 anos de idade em conheci o diretor Amir Haddad e fiz uma oficina com ele em Macapá. Sou de Altamira no Pará, lá não tive contato com muita arte mas quando fomos com meu pai para o Amapá, eu conheci vários grupos, como Galpão, Latão, o próprio Amir Haddad.
Amir Haddad falava que o carnaval é o momento onde o homem, a mulher… o brasileiro pode ser rei, ser rainha, ser o que quiser, ser médico, ser palhaço. Quem tem alguma coisa travada pode destravar aquele desejo. A pessoa pode liberar aquela coisa guardada dentro do peito que não se consegue colocar pra fora. Ele falava durante horas sobre isso, e aquilo sempre me instigou. Gente não conheço carnaval! Eu pensava. Porque o carnaval do Amapá e do Pará é muito diferente. E muito violento e muito machista, enfim. Não tem tanta alegoria, não é tão alegórico como aqui no Rio.
Com o grupo Tá na Rua em 2001 eu tive a oportunidade de desfilar logo no mês que eu cheguei no Rio. Desfilei na escola Grande Rio, em uma ala junto com Joãozinho Trinta. Olha a sorte! Desfilei come ele e com o grupo Tá na Rua nessa ocasião. O Amir Haddad me impulsionou bastante para chegar ao carnaval de uma forma mais aberta, sem pensar somente em sambódromo. Mas pensar no carnaval como cultura de liberdade. E atualmente eu trabalho com a cultura popular com resgatando o que eu aprendi com os mestres, né?!
O que é o Carimbaby? Esse projeto flerta com o carnaval?
Carimbaby é um projeto que vem de um a vivência que acontece desde que eu cheguei no Rio. Fui impulsionada a dançar o carimbó, danço desde criança, desde Altamira, aonde nasci. Em 2001, quando chego no Rio, eu, minha irmã e dois amigos fomos pioneiros com o Carimbó, juntamente com o grupo Bandalheira Paidegua. Mais tarde o grupo se transformou no Paideguará, um grupo de resistência cultural, de cultura popular. Trabalhamos muito com oficinas de carimbó, siriá, e outros rítmos da Amazônia. Criamos o grupo Paideguará, e agora Carimbaby. Depois de um tempo, eu engravidei, mas queria continuar fazendo carimbó. Gravida, eu percebi como era difícil levar as crianças para brincar nos carnavais lotados. E aquilo me deu um start. Eu já estava trabalhando na Casa Monte Alegre, dando aulas de música e de contação de histórias. E depois que eu tive filho percebi que precisava trazer esse universo pra rua. Não era só o universo da minha casa e da nossa escola. Mas precisava misturar o que eu já tinha vivido na cultura popular com a minha maternidade. A escola abraçou o projeto do Carimbaby e isso nos deu um oxigênio. Hoje temos muitos convites, a criançada se diverte com o repertório. Introduzimos no Carimbaby a guitarrada, que é uma coisa que a gente tocava, mas não tocava tanto.
A gente tentou criar brincadeiras dentro do Carimbó, nas músicas que tinham mais a ver com a criançada. E um elemento que veio a calhar com esse universo foi a água. Então a gente pegou os caranguejos, os pescadores, a mãe d’água, os mitos e lendas da Amazônia e inseriu tudo isso dentro do Carimbaby.
Muita gente tem receio de levar as crianças pra rua por conta da multidão dos blocos . Como você aproveita o carnaval com seu filho?
Realmente os grupos de carnaval tomaram uma grande proporção e não só uma proporção de rua e de quantidade de gente, mas econômica. Claro que a gente ainda tem a resistência dos antigos de colocar o bloco na rua e de fazer a brincadeira acontecer. Mas tem muitos blocos que cobram caro para você participar, tem ensaios muito rígidos. Em alguns lugares eu chego e no primeiro momento noto que aquilo não é pra mim. Porque o coração é quem manda.
Também tem aqueles que você se apaixona. O Carimbaby vai às ruas com a Monte Alegre desde 2017, e são quatro anos que a gente está colocando o bloco na rua. E se não fosse a Casa Monte Alegre a gente não teria acesso a essa rede do bairro de Santa Teresa, de pais e pequenos.
Agradeço muito a essa rede. Eu com meu filho escolhi no máximo três blocos. Quando ele era bem pequeno, era mais fácil ir para o carnaval. Porque eu dava mama a ele no peito, ficava sacudindo-o no sling e revezava com o pai. Agora a gente tem muita dificuldade de leva-lo até nos blocos aqui na esquina de casa. É muito lixo, muita bagunça, muito cigarro e até os blocos que são para crianças estão ficando lotados.
E a gente fica com medo de perde-lo, sei lá, aquela coisa de pai e mãe. Então a gente escolhe três blocos no máximo, mais perto da gente. Durante o ano eu tento o manter dentro dessas atividades para que o carnaval e a cultura popular e arte seja memória viva dentro dele. Com esse (governo do)Estado e essa Prefeitura atual a gente está bem preocupado sobre que vai ser da nossa cultura. E quando esse fascismo segura o microfone a gente também levanta nossos estandartes. Então de alguma forma a gente também está reagindo na resistência diária.
Quem entra nessa conversa é Maria Angélica, mestre circense, fundadora do Teatro de Anônimo, educadora e mãe do Caio e do Lucas.
Maria Angélica, em sua experiência com o Teatro de Anônimo, em oficinas e festivais, você certamente conheceu muitos artistas atuantes no Rio de Janeiro. Muitos deles vivem intensamente o carnaval, porque trabalham durante esse período. Qual a importância do carnaval para esses profissionais?
Muito difícil trabalhar com arte e cultura e não se deixar influenciar pelo carnaval, que é a maior festa democrática do povo brasileiro, aqui no Rio de Janeiro pelo menos, nossa cidade respira intensamente o momento do carnaval. Sei que no Brasil, muitas cidades também, mas, é difícil falar desse país tão grande, onde temos culturas tão diversificadas. Cada vez ouso menos falar pelo país inteiro. Como você mesma disse, já rodei um pouquinho ao longo desses 33 anos de grupo e sempre fez parte da nossa pesquisa as manifestações populares.
É de uma riqueza criativa esse nosso carnaval que não consigo ficar de fora. Tem espaço para todes, crianças e adultos, espaço onde todos vivem suas fantasias, sejam fantasias tradicionais, sejam fantasias de protesto. O Carnaval sempre juntou o sagrado e o profano, o pobre e o rico, momento onde as diferenças somem. Isso, claro, falando dos espaços públicos. Temos também aqueles espaços que foram originariamente criados pela camada popular, como os desfiles das escolas, o terreirão do samba, lugares que, quando os governantes percebem o sucesso, começam a explorar, transformar suas características e perde seu melhor público. Mas, nossa gente é criativa e criam sempre novos lugares para suas expressões.
O carnaval também é um espaço para os artistas trabalharem, fiz muito desfile em escolas de samba, fazendo trapézio, lira, perna de pau, enfim, como é um espaço histriônico, as escolas procuram as técnicas de encantamento e que se fazem aparecer na avenida. Já trabalhamos também em vários palcos da RioTur, enfim, é um momento onde a cidade recebe pessoas do mundo todo. Onde você for, a cidade está lotada de gente, o clima é de festa e purpurina e de fato, precisa-se de uma programação grande para dar conta de tanta demanda.
Fica comum você sair para comprar pão de manhã e se deparar com seu vizinho chegando com vestimentas femininas ou somente de sunga, todo purpurinado, tudo passa ser visto com outros olhos, eu amo essa liberdade e não sei por que não assumimos ela o ano todo. Essa alegria nos renova e de fato é um abre alas para o ano começar.
Qual a sua relação com o carnaval? Você faz parte de algum bloco?
Minha relação com o carnaval já começou desde o dia em que nasci, rs. Minha mãe deu à luz numa 5ª feira que antecede o carnaval, logo, já era carnaval naquele dia. Minha família morava no Morro da Providência e eu fui a penúltima de 10 filhos criados. Quando minha mãe chegou do Hospital do Servidores do Estado comigo, achou que fosse ter uma recepção da família, pois fui a única mulher dos filhos e chegando em casa, meus irmãos estavam todos fantasiados saindo para o Bloco Coração das Meninas. Ela diz que falou:
– Vocês não vão ficar em casa pra receber a única irmã de vocês?
Eles responderam:
– Mãe, ninguém mandou ela nascer no carnaval.
E assim, cheguei no clima da folia, onde todos são livres.
Meus irmãos adoram samba. Fui criada na Vila da Penha num apt. de 2 quartos e com essa família de 14 pessoas dentro dele. Aos finais de semana, ainda fazíamos pagode na sala onde vinham os amigos. Nós sempre tivemos pandeiro, tam tam, repique, tamborim, surdo, tudo em casa. Sempre me deram o chocalho para tocar e logo me especializei nesse instrumento. Assistíamos João Roberto Kelly e eu era a menina que dançava para eles tocarem. Fomos muito felizes naquele apartamento. O samba sempre fez parte da minha vida.
Com o Teatro de Anônimo, essa vivência continuou, treinamos durante um bom tempo no Morro do Fubá, espaço que conseguimos através do amigo Serginho Mitiri, que na época tinha o grupo Abadayá. Frequentávamos os ensaios do Orunmilà e ainda morando na Vila da Penha, teve um ano que vinha ensaiar aqui toda segunda-feira à noite, para desfilar na bateria tocando caixa de guerra no carnaval. Ainda não tinha a FEBARJ, local onde o bloco ensaia hoje em dia, era na comunidade.
O samba também fez parte do nosso treinamento de teatro, junto com a capoeira. Depois de anos, a vida nos fez cruzar com músicos que tocaram nos nossos espetáculos. Tivemos o privilégio de ter nesse encontro, músicos de excelência do samba carioca tocando ao vivo para gente. Nessa época, tínhamos uma sede em comum com o Grupo Boitatá e vimos o bloco nascer. Eram incríveis as saídas da nossa sede na Rua do Mercado 45 e passear pelas ruas antigas do Centro do Rio.
Éramos uns poucos amigos descobrindo esse carnaval de rua que foi esquecido durante anos. Quando vimos, estávamos fortalecendo e estimulando o surgimento de muitos blocos. Claro que tem muitos blocos muito mais antigos que o cordão e que gosto, como o Cacique de Ramos, por exemplo, mas, respondendo a sua pergunta, o Cordão do Boitatá é o meu bloco, sou cheia de memórias afetivas vividas dentro dele. Meus filhos cresceram vendo esse carnaval.
Para você, o que representa esse bloquinho de carnaval “abre alas” no início do ano letivo da Monte Alegre?
É mais uma forma dentre tantas que a Monte Alegre vê a educação. Para a escola, os ciclos das festas têm uma importância educacional. Como apresentar esse nosso mundo a esses seres pequenos sem mostrar-lhes as nossas festas, as brincadeiras, a maneira que nosso povo se manifesta? É através delas que também se constitui pessoas afetivas, criativas, sociais, cheias de empatia e com boa percepção de ritmo, além de tantas outras coisas boas que esse aprendizado nos traz.
Acredito que começar assim é a melhor maneira de trazer um axé para a escola e seu novo ciclo. É lindo ver as crianças aprendendo as marchinhas, ver elas curtirem a brincadeira que elas tanto gostam, que é de se fantasiar, se propagar nos adultos, todos brincando juntos. Agora, tem a novidade do Carimbaby trazido pela Bárbara Vento, que virou febre entre as criancinhas, todas, sem exceção dançando com suas saias e ampliando seus horizontes corporalmente, através da dança e do canto.
Como você vê o carnaval em Santa Teresa? Existe algo de especial no carnaval daqui ?
Nosso bairro é especial por si só. Desfilar nessas ruas traz uma magia das épocas antigas, bate um saudosismo de um lugar nem vivido por mim, mas que faz parte do imaginário popular. Nosso bairro tem alguns blocos que vêm resistindo à produção dessa festa. Tenho um carinho todo especial e respeito ao Bloco Céu na Terra, adoro. Tenho muitos amigos ali e curto muito sua forma de se organizar e ver o brinquedo, respeitando e dando sempre espaço as tradições. Amo de paixão.
Mas, tem algo que me incomoda e que faz parte do Rio como um todo. Tem muita gente que chega de outros pontos da cidade e vem para a brincadeira, sem respeitar o lugar em que está entrando. É uma questão de educação mesmo, infelizmente, nós cariocas, somos muito mal educados no que se refere aos espaços públicos. Não se joga até hoje o lixo no lugar que se deve jogar. As pessoas usam qualquer espaço como banheiro, as ruas após a passagem de um bloco, ficam como se tivessem sido bombardeadas.
Estou torcendo para que nosso carnaval 2020 passe na paz e na alegria. Os governantes são os piores exemplos que podemos ter no que diz respeito às mulheres, violência e empatia. Espero que aqueles que se sentem representados por eles não queiram mostrar sua força e causar problemas a esta festa tão amada e esperada por muita gente neste bairro, nesta cidade, neste país.
Pular carnaval esse ano virou um ato de resistência, nós artistas, além das festas populares, viramos alvo do atual governo. Somos um exército de encantados e isso incomoda, mas não se tira essa festa da gente. Nossa arma é nossa alegria que trasborda pelas ruas enquanto cantamos e dançamos, entregues a festa da carne.
Juba chega pra essa conversa. Músico veterano do carnaval, arte-educador da Monte Alegre e pai da Margot, ele fala um pouco sobre sua experiência no carnaval enquanto resistência cultural.
Na sua vida, quando surge essa relação entre música e carnaval?
Quando eu era criança eu ia nos bailes de carnaval no Goiás Velho, aonde ia passar o carnaval com meus familiares. Ficava admirando o trombonista tocando numa banda local e o trombone era como um sonho inalcançável, um sonho impossível. Naquele baile de salão, fechado, parecia que tinha gente que estava lá desde de manhã, outros desde a tarde e outros desde a noite hehehe, a gente perdia a noção do tempo.
Era muito louca aquela situação porque misturava crianças, com adultos, com velhinhos, com bêbados, pessoas se esfregando no cantinho, família presente fantasiada. E eu só babando com o pessoal do trombone tocando.
Antes de vir para o Rio, eu toquei no carnaval em Florianópolis numa escola de samba de lá. Na época eu tocava bateria e baixo e trombone, mas na escola de samba não tinha trombone, não tinha sopro e isso em 2004. Quando eu cheguei no Rio eu fui convidado por um amigo para tocar no Céu na Terra e aí sim foi quando eu realizei aquele sonho de criança de tocar marchinha em um bloco de carnaval.
Você é uma figura conhecida, principalmente nos movimentos carnavalescos de ocupação do espaço público né? É importante pensar o carnaval de rua enquanto manifestação artístico-política? Por que?
O espaço público é nosso. A gente trabalha com o espaço público exatamente no sentido político, porque a vida só existe em sociedade quando a gente tem um espaço de livre circulação, que seja gratuito. Essa palavra é fundamental, espaçopúblico, porque se você está falando de um lugar privado, que se tem que pagar para entrar, você já está fazendo um filtro de pessoas e logo um filtro de classes sociais, uma segregação.
O espaço público é onde a vida real existe, onde as pessoas de todas as classes sociais se encontram e a cultura se realiza. O carnaval é uma manifestação política total a partir do momento em que todo tipo de pessoa, que passa o ano inteiro se sentido oprimida pela sociedade, pelo trabalho e pela vida, quebra as regras, se transforma no que quiser. A gente fala de empoderamento, empoderamento vem desde o carnaval de rua. Empoderamento é a história do carnaval. Como dizia Bakhtin, carnavalização é a quebra dos paradigmas, regras, leis e especialmente a quebra da hierarquia. E é por isso que o carnaval tem um potencial tão grande de emancipação social. Nele todos podem ser sujeitos de suas vidas.
O que tem de especial nesse carnaval das crianças? O que vocês estão pretendendo levar para as ruas de Santa Teresa?
O carnaval tem muito a ver com a criança! né? Por um lado pelo brincar. No carnaval o adulto se sentem criança, e esse lado lúdico acaba aflorando a criança da pessoa. Ser criança tem seu lado político também, porque de certo modo você está livre das opressões do dia-a-dia, do cotidiano, das contas a pagar.
Por outro lado é interessante ver a ocupação do espaço público por crianças porque a gente sempre fica muito preocupado com isso. A rua tem carros, pode ter bandidos e a gente tem que estar sempre atento. Mas a música e a arte causam sempre uma certa proteção, eu acredito. O espaço público que tem música e arte vai ter segurança , as vezes muito mais do que um ambiente hostil de policiais.
“As crianças, no carnaval, mostram sua própria verdade para os adultos.”
Quando a gente está com crianças, e com esse receio em controlar o carinho delas, o senso de proteção coletiva ajuda a dar conta. Todo mundo cuida um do outro e a gente segue na alegria. O bairro de Santa Teresa fica mais mágico ainda com um bloco de carnaval de crianças. Eu toco no bloco da Monte Alegre tem alguns anos e na primeira vez eu nem tinha a Margot, minha filha, ainda nem trabalhava lá. Na época o Dudu( do bloco Céu na Terra) me chamou para tocar trombone e não tinha nenhum instrumento de sopro. Era ele na percussão, uma caixa, um surdo, eu de trombone. Isso foi há uns oito anos atrás.
As crianças, no carnaval, mostram sua própria verdade para os adultos. As crianças tem isso da brincadeira o ano inteiro. Elas estão em um ambiente em que elas são protagonistas, porque é o ambiente da brincadeira. Nesse sentido, elas são mais experientes do que os adultos, porque estão vivendo isso diariamente.
Em nosso bloco levamos várias músicas infantis das tradições populares, de uma forma folclórica, ritual. Um ritual da ancestralidade. Nos conectamos com nossos antepassados porque as músicas infantis para o povo brasileiro são tradição. E é muito legal estar participando de uma tradição que passa por várias gerações.
O carnaval não é só lazer, né? O que o Carnaval, enquanto manifestação cultural popular, pode contribuir para a escola?
É muito bom para a escola entender essa dimensão política do carnaval. O carnaval pode levar para os pais e educadores o sentido de reaprender a brincar. Existe uma riqueza nas próprias músicas de carnaval, elas refletem crônicas que contam a história do povo, do dia-a-dia do brasileiro. Por outro lado tem um ingrediente muito legal para a escola que são os arquétipos, as fantasias. Colombina, pierrot são figuras lúdicas que fazem com que a gente pense sobre a criação de personagem e o que é criar personagens. Fazer isso na escola é enriquecedor para adultos e crianças. O Carnaval diminui essa distância entre adultos e crianças.
Juliana Manhães é presença garantida em nosso bloquinho e conta pra gente as históras de outros carnavais.
A cultura popular, em especial a dança popular, tem uma forte presença na sua vida, né? Quando essa sua experiência com cultura popular deságua no carnaval?
Para começar, eu nasci em São Luiz do Maranhão. Naquela ilha cheia de cultura popular forte. Durante o ano inteiro tem um ciclo festivo intenso. Mas é curioso, porque meus pais são do Rio de Janeiro, que também é um lugar altamente festivo, e o fato deles serem daqui e terem ido morar lá traz várias perspectivas também. A dança popular está na minha vida porque tanto meu pai quanto a minha mãe frequentaram rodas de bumba meu boi, rodas de tambor de crioula, iam em terreiros de mina religiosos e isso me marcou profundamente.
O carnaval é um ciclo festivo que desde São Luiz eu sempre vivenciei. Vivi o carnaval no sentido da balbúrdia, e do medo também. Porque quando criança a cultura popular do Maranhão, os cloves, e o fogão faziam do carnaval um evento assustador. E também de uma grande meleca, bagunça também. Brinquei muito de maizena na cara, com os blocos de sujo como são chamados no São Luiz.
No Rio eu conheço o jongo. E antigamente, e quando digo antigamente é engraçado, eu vivenciei mestre Darci e Dona Su fazendo jongo e vendendo cerveja no carnaval dos Arcos da Lapa. Essa é minha memória de início de carnaval.
Pra mim o carnaval é total cultura popular, não precisa nem desaguar na cultura popular, ele já é parte da abundância, de euforia, e de carne, né? “Carne é de carnaval” já diria a música. E carnaval, pra mim, é o momento da catarse total.
Nessa festa os comportamentos se restauram mas se repetem. E esse é o momento do carnaval, de quebra total das leis.
Essa multiplicidade de manifestações brasileiras que habitam o Rio de Janeiro se integra ao carnaval. Pra você existe uma potência nesses encontros de culturas durante o carnaval?
Me lembro do início de bloco de rua. Sempre começa assim esses movimentos, pequenininho. Eu lembro de Norma Nogueira tocando aquela sanfona e querendo fazer a turma do funil. Eu trabalhava com ela no São Vicente, no coral, e o bloco Céu na Terra começa assim. Claro que não assim, claro que é muito mais profundo e enrredado mas eu me lembro assim.
O Rio tem peculiaridades muito interessantes. Pelo menos é uma crescente que vejo aqui. Como aqui é capital do Brasil a gente tem aqui o movimento do Pará, do Carimbó, do Maranhão, do tambor de Crioula. Os Maricas também fazem os blocos tradicionais. E nessa eu acabo curtindo carnaval dos amigos. Aqui eles fazem o tambor de crioula na quarta feira de cinzas que é tradição lá no Maranhão.
E é interessante os blocos iniciando aqui esses movimentos territoriais. A maneira com que cada gueto de cada Estado, a partir de suas culturas, vão formando blocos. Temos como exemplo a Terreirada Cearence e muitos outros. E isso é muito forte aqui no Rio, no carnaval carioca.
Essa multiplicidade de manifestações que acontece o ano inteiro. É porque o Rio também se faz um mercado, uma indústria a partir do carnaval, não é? Os blocos conseguem traçar um panorama de oficinas e de formação que acontece o ano todo e isso é um lugar de muita potência.
E é legal ver que o carnaval no Rio é muito transgressor mesmo com esses governos repressores que estão cada vez mais truculentos. A gente consegue quebrar regras, limites e fazer o carnaval sem autorização, na surdina, no grito mesmo. O carnaval é muito forte porque é fora de controle, ganha a cidade inteira. É muito bonito de ver esse Brasil todo no Rio de Janeiro.
Sobre o carnaval inicial eu lembro do cordão do Boitatá. Que pega essa história do jongo, dos subúrbios, é bonito ver essa quantidade de manifestação que sobra, depois de um genocídio diário. Mas como ainda tem manifestações maravilhosas! Ver a potência que as próprias escolas de samba têm. O sentido que elas têm para além da vitrine do sambódromo. É interessante como os blocos lidam com o crescimento. O fato do Cordão do Boitatá, por exemplo, ser acústico, não ter carro de som, ou trio elétrico até hoje, isso é um ganho.
Além de moradora do bairro você participa e promove ações culturais aqui, né? Gostaria que você comentasse sobre essa experiência.
Eu amo Santa Teresa. Esse é um bairro em que você se sente no Rio antigo. Ele tem história e tem muita ancestralidade. Bem, as Três Marias tem dezoito anos, ela existe desde 2002. A gente realiza brincadeira de rua no Largo das Neves. Já transitamos por outros bairros, outros lugares do Rio de Janeiro, mas o Largo das Neves é a nossa casa, nosso terreiro urbano. É onde circula a arte popular. Depois começamos a fazer o tambor de Aleluia, no romper da quaresma. Como acontece no Maranhão e em qualquer lugar do Brasil, é o momento em que os tambores voltam a tocar. Depois do carnaval, na cultura cristã, os tambores precisam parar, né? A quaresma é esse momento de recolhimento.
E nas Três Marias, mesmo não sendo católicos desse jeito, a gente respeita a tradição do que nos ensinaram e do que a gente vê enquanto movimento lá no Maranhão. Então a gente começa com esse grito, rompendo com a quaresma e dando início a um novo ciclo de festejos que estão por vir durante o ano. No Maranhão é muito forte, porque logo depois desse momento vem a Festa do Divino, e os grupos todos de Boi começam a ensaiar. Eles não param nunca de fazer seu ciclo, de bordar, de cuidar das roupas, de pensar em toadas, os ensaios, e em tudo que reza a tradição.
No Sábado de Aleluia a gente faz essa conexão com o Maranhão. Agora por exemplo a gente vai retomar esse ciclo com oficinas –festas, que vão acontecer ali na Casa Sol e desembocam no Largo das Neves, na Lua Nova e na Lua Cheia. Um movimento que dá continuidade ao trabalho belíssimo que o Cacau Amaral está fazendo com o Boizinho das Neves. Um movimento da Lua cheia que a gente participa, mas que depois da maternidade eu tive que dar uma parada….
Mas voltando, Santa Teresa é um marco da cultura popular e é importante fazer a cultura popular circular. A gente está nessa fase de “ninguém largar a mão de ninguém”. O coletivo faz a força e a partir dessas brincadeiras e dessa festa a gente resiste. E é por isso que o Céu na Terra tá ai, um movimento forte, que cresceu demais. E isso é muito bom também, porque é uma potência, o bloco já que cresceu tanto e virou o grande carnaval no Rio de Janeiro, tem que ter apoio diante disso. Você vai no carnaval de Pernambuco, eles podem demorar para pagar, mas tem um investimento na cidade, sabe?!
Hoje os blocos ganharam grandes proporções, e muita gente tem receio de levar as crianças pra rua. Isso já aconteceu com você? Como você aproveita o carnaval com sua filha?
Quando minha filha nasceu, no primeiro carnaval ela tinha três meses. Eu levei ela pro carnaval, com muito cuidado, com muito carinho. Eu fazia parte da ala das baianas no Boitatá na época. Lembro que cheguei lá às seis e meia, e acho que fui embora umas nove horas. Porque chega uma hora que o calorzão não é pra bebê, não é pra criança tão pequena, não é mesmo? Via muita mãe com criança, muita guerreira, e o bloco mega lotado. Eu sinceramente, acho do fundo do meu coração, que a mãe tem que se divertir mesmo, tem que curtir mesmo, e para isso a mãe precisa ter uma rede de apoio. Porque a gente curte mesmo em um bloco grande quando está sozinha, né? Eu acho que as mães precisam buscar o espaço das crianças quando estão com elas.
Acabeou que entrei no Varanda Baby pra ver o Céu na Terra passar pelo menos. As mães têm que dar conta de ver e de curtir um pouco que seja. Pra isso acho que elas tem que buscar realmente os blocos de criança, como o bloco da Monte Alegre. Porque o que vem acontecendo, como no Gigantes da Lira, é que os blocos pra crianças viraram blocos de adultos. Os adultos invadiram. E sinto que é fundamental criar esse espaço para as crianças e pros pais, para as famílias. Eu não tive receio de levar a Luana, posso até levar ela em uma coisa ou outra de bloco grande, com uma perspectiva muito atenta sobre até que ponto vale a pena. Mas eu busco mudar a rota e encontra coisas menos cheias. Sair da zona sul e sair do centro.
Eu fui recentemente pro grito de carnaval da escolinha do Jongo da Serrinha e foi incrível. As famílias se unem e a gente cria novas propostas, porque não se pensa nas crianças, não se pensa nas famílias. Mas eu amo carnaval, minha filha tem aqui uma mala de fantasia. E não para de falar que o carnaval está chegando. Nós duas curtimos muito o pré-carnaval também, que são deliciosos e dá pra curtir o vazio de grandes blocos. Acho que a mulherada tem que levar as crianças. Se a mãe, ou o pai , a família, está afim de pular o carnaval, vai! Leva a criançada e pondera, olha aonde tem sobra, até quando rola de ficar. Porque esse momento de alegria e de abundância é importante saber se conectar com o outro.
E esse sentido de carne, não é o da orgia, do beijar na boca, isso não é o carnaval em si. Mas é o que muita gente pensa, sente e aproveita o carnaval assim. O carnaval é pensar o sentido de carne enquanto “estamos juntos” pra brincadeira, pra enlouquecer, pra curtir essa abundancia da alegria. Isso é fundamento de base da cultura popular, no São João e nesses ciclos que envolvem um lugar religioso para além do sagrado. Na minha visão, o carnaval está nesse ciclo também. Mas a gente já está entrando em outro papo. Agradeço o diálogo e um grande abraço. Até!
Lars é nosso vizinho sanfoneiro e está sempre com a gente nos carnavais da Monte Alegre. Chega mais Lars!
Lars você toca no carnaval? Qual sua relação com o Carnaval de rua?
Atualmente me dedico ao acordeom, instrumento esse que por ser portátil (Tenho um acordeom pequeno de 80- baixos) é possível andar pela rua. Eu introduzi o instrumento para tocar marchinhas de carnaval, desde então todo carnaval as pessoas me contactam para tocar em festas particulares, escolas, ambientes fechados, privados ou na rua, seja em cortejo ou parado. Confesso que nunca fui muito carnavalesco, porém por conta de normalmente tocar para crianças, na maioria das vezes, e em blocos pequenos, me é prazeroso.
Santa Teresa é um bairro cultural, você acha que o carnaval aqui tem suas particularidades?
O bairro além de ter um clima de cidade pequena, tem um ambiente histórico, cosmopolita, daí a razão que durante o carnaval não saio mais do bairro. É prazeroso, confortável ficar em Santa Teresa durante o carnaval.
Você tem alguma lembrança especial de um carnaval que passou aqui no Rio?
Minha lembrança mais remota e marcante seria na década de sessenta quando minha mãe nos levava ao desfile quando era na Av Rio Branco. Tenho vaga lembrança do Cacique de Ramos, Bafo da Onça, Além de ter vistos as escolas de samba Mangueira, Portela, Vila Isabel, Etc.
No bairro eu vi bem no início o escorrega no trilho, um cortejo de marchinhas de carnaval que o seu Arnaldo, do ainda Bar do Arnaldo, financiava. Daí surgiu na sequência o Carmelitas que curti muito no início, quando eu tocava caixa. Depois evoluiu para essa grandiosidade que é hoje. E Já existia o Bloco Badalo.
Você considera importante que o carnaval tenha a presença das crianças? Pra você faz sentido segregar adultos e crianças ou vale fazer carnaval que caiba todo mundo?
Acho super saudável a brincadeira para as crianças. Acho que são energias distintas o carnaval infantil e o dos adultos. Acho complicado misturar, porém, há casos como os blocos Aconteceu e Carmelitas aqui no bairro em que houve um esforço no sentido agregar as crianças tendo uma ala infantil na frente do bloco, porém não vingou.
É, o carnaval em Santa Teresa é das crianças. E para fortalecer ainda mais esse movimento, mulheres inspiradoras como a Karol Schittini colaboram para que mais bebês e seus responsáveis possam curtir o carnaval do bairro. Conversamos com ela sobre o Varanda baby, que aconteceu na Casa Sol no desfile de pré-carnaval do bloco Céu na Terra, e que promete novas edições.
Karol, como surgiu a ideia de fazer esse projeto? O que acontece nessa varanda?
O projeto Varanda para o Céu na Terra acontece a quatro anos a partir de uma amiga que teve bebê. Na época o companheiro dela tocava no Céu na Terra e ela se lamentava porque não iria conseguir acompanhar o bloco por conta do seu bebê, na época muito novinho. Eu morava em um sobrado na rua do Oriente e a gente ficava lá vendo o bloco passar, recebendo com alegria o bloco do bairro e jogando purpurina, confete e água para refrescar os foliões … Fazendo bagunça. Acompanhávamos o bloco, as vezes descíamos e íamos até o Largo as Neves. As mães e bebês começaram a fazer parte dessa história usando a casa como suporte.
Depois o bloco mudou a rota, durante o carnaval ele vai para o Curvelo. Desde então eu passei a fazer o projeto da Varanda no pré-carnaval. Que é no fim de semana anterior. Eu proporciono uma sala com decoração de carnaval, eu recebo as famílias com um café da manhã. Esse é um lugar protegido do sol, da chuva, da multidão, do calor excessivo. Um espaço em que as mamães podem dar uma ducha nas crianças.
Como foram as experiências anteriores?
Os últimos três anos foram ótimos, tivemos entre cinco e quinze famílias, com formações diversas, além de pais, avós e amigos da família. Essas famílias contavam com crianças de três meses ate quatro anos aproximadamente. Nesse espaço as crianças interagem, brincam, ficam felizes. Elas aprendem a lidar com música alta, com a multidão, entendem o espirito da brincadeira. É uma oportunidade para as famílias poderem se conhecer também.
Qual a importância de espaços como esses para famílias com bebês ou crianças pequenas?
A importância é criar um espaço principalmente para as mamães que ficam isoladas do convívio social nesses primeiros meses dos bebês. E a gente acolhe principalmente as mães, fazendo que elas posam sair no carnaval com seus pequenos, deixar a bolsa, o carrinho, trocar de fralda, poder oferecer um alimento saudável para as crianças mesmo estando na rua. Além de se encontrarem com outas famílias e trocarem e se divertirem.
Depois dessa aula sobre carnaval de rua, nada melhor do que por em prática os afetos e a liberdade que essa tradição brasileira vem nos trazer. Só tenho a dizer que estamos com um excelente time. Então, siga o bloco! Aguardamos vocês nesse carnaval consciente, popular, feito para e com as crianças.
Cuidemos todos dessa nova geração de pequenos e desse território de resistência que é Santa Teresa.
foto de capa: Sabrina Mesquita