O estranho carnaval fora de época – e sem Quarta-Feira de Cinzas – deste ano não passou em branco. Foram para as ruas aqueles que estão com um grito parado no meio da garganta. Oprimidos por tantos desmandos, com medo de tantas doenças. E eu sou capaz de apostar que essas pessoas tiveram, como diz o poema-canção de Lenine, “um pouquinho de saúde/um descanso na loucura”.
Foram para os sambódromos do Rio e São Paulo aqueles que gostam do espetáculo – realmente muito bonito – de carros alegóricos, fantasias exuberantes e sambas-enredo com mensagens que nos representam. Com a dose certa de humor misturado a críticas severas. Momentos de desobediência civil explícita. E lá vamos nós, gritando com os autores dos sambas as dores que nos rodeiam e invadem.
A “Mancha Verde”, escola vencedora em São Paulo, ganhou o prêmio com um alerta sobre a água. O enredo “Planeta Água” refletiu sobre a importância e valorização do bem comum. Como não podia deixar de ser, a escassez de água foi parte da letra, assinada por onze autores: Marcio André Filho, Marcelo Lepiane, Lico Monteiro, Rafael Ribeiro, Richard Valença, João Perigo, Solano Mota, Leandro Thomaz, Telmo JB, Lanza Muniz Moraes e Rosali Carvalho.
“Tantos caminhos pra um dia voltar
À Terra, deixando um clamor pra humanidade
A nobre missão de preservar
Nosso futuro, nosso lar!”
Vale a pena, mesmo, refletir sobre este elemento essencial para a existência de qualquer ser vivo no planeta.
“Salvar as nascentes que hoje se encontram em risco assegura uma boa qualidade das águas, fortalece a produção de alimentos saudáveis e garante a vida dos rios, indispensáveis para a manutenção da vida não só no campo, mas também nas cidades”, diz o texto no site do Museu do Cerrado.
O Cerrado, que ocupa 25% do território brasileiro (se estende por 12 estados), segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), é considerado o berço das águas. Ele tem 19.864 nascentes, 23,6% de todas as nascentes brasileiras, possui três grandes aquíferos (o Guarani, o Bambuí e Urucuia) que beneficiam oito entre as doze bacias hidrográficas brasileiras. Como está localizado na porção central do país e em uma região de elevada altitude, o Cerrado distribui recursos hídricos a todo território nacional, num fenômeno que recebeu o nome de “efeito guarda-chuva”.
Mesmo assim, com toda essa grandeza de bens, o Cerrado está sendo devastado. Em 2018, participei de um encontro no Museu do Amanhã, organizado por entidades da sociedade civil, cujo tema essencial era, justamente, a espoliação daquele bioma para dar lugar a pasto e plantações de monocultura. E, quando se espolia o berço das águas, a escassez de água será o resultado iminente.
Uma das palestrantes naquele encontro, a assessora da ONG Fase – Solidariedade e Educação, integrante dos Núcleos Executivos da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Maria Emilia Pacheco, lembrou o lado talvez mais cruel da crise hídrica:
“Nós, aqui da cidade, estamos nos esquecendo de que os alimentos que temos hoje na mesa vêm do trabalho que continua sendo feito pelas comunidades tradicionais”, disse ela.
Preservar os aquíferos para que não nos falte água é, em última instância, garantir alimentos para todos.
A devastação do Cerrado tem, em parte, origem nas mudanças do clima. E, em parte, no modelo de produção agressivo do agronegócio. Ainda há tempo para fugirmos disso?
O jornalista Joel Bakan lançou, em 2020, o livro “New Corporation”, ainda sem tradução no Brasil, em que chama a atenção para o fato de estarmos transferindo para as empresas o papel de controlar os bens comuns. Como a água.
Bakan lembra que no início do século, em Cochabamba, na Bolívia, houve uma revolta popular para tirar do comando privado a empresa de água da cidade. Foi uma batalha acirrada que durou alguns meses até que o contrato de serviço público firmado com a empresa Bechtel, que deveria valer por longos 40 anos, foi desfeito. Depois desse acontecimento, mais de 200 cidades mundo afora fizeram o mesmo.
Será a única solução? Não. Mas, uma delas, pelo menos, pode ser. A questão é que as empresas privadas são compelidas a priorizarem os interesses financeiros sobre tudo o mais. E isto as leva, muitas das vezes, a desconsiderar as necessidades da população.
Por outro lado – e aqui estamos falando apenas dos regimes democráticos – os governos são eleitos pelo povo e precisam responder ao público. Temos pedras nesse caminho, sabemos bem. Mas sempre será mais fácil detectá-las do que tentar decifrar a caixa preta das grandes corporações e regulá-las.
Em paralelo, podemos rever nossas próprias pegadas nessa crise hídrica e das mudanças climáticas. Aqui no Brasil, país da abundância, só agora é que começamos a pensar mais seriamente na questão da economia de água. Não é o consumo doméstico que mais impacta, como querem fazer crer os movimentos de apoio às grandes corporações. Mas, certamente, o controle em casa, ensinado inclusive para as crianças, pode adubar um comportamento mais econômico que será necessário cada vez mais.
Como se vê, uma festa popular e pagã pode servir até para reflexões mais profundas sobre nossa civilização.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.