O Bem Viver e a cultura
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“Caminhos para a cultura do Bem Viver” é o sugestivo título que o xamã e líder do movimento socioambiental Ailton Krenak deu ao livro que surgiu a partir de uma palestra que ele proferiu na Escola Parque em junho do ano passado. A pandemia já nos afetava, embora não com cenas tão trágicas como estamos assistindo agora. E Krenak, sem se perder em divagações, foi certeiro ao focar numa grande, imensa confusão que muito se faz na vida ocidental: a diferença entre o Bem Viver e o Bem Estar.

Bem Viver, ou Buen Viver ou Sumak Kausai (na língua indígena) tem um sentido amplo, de respeito com a Terra, Gaia, um ser vivo. Bem-Estar é a função ocidentalizada do conceito, uma ideia apoiada na economia e na política. Bem-Estar, se me permite Krenak, é um jeito de os povos não brancos se acertarem no planeta para que as pessoas possam ter acesso a tudo de forma igualitária. Sem respeito algum aos limites, às dores da Terra.

Bem Viver tem muitos aspectos, mas uma única origem: a sabedoria indígena. No livro “O Bem Viver” (Ed. Elefante), o economista Alberto Acosta conta como, quando ministro de Energia e Minas do Equador, em 2007, pôs o conceito do Bem Viver na Constituição do seu país. Na época, o presidente do país era Rafael Correa. E Acosta aponta o fato de o “Buen Vivir” ter sido usado “como um slogan para propiciar uma espécie de retorno ao desenvolvimento”. É tudo o que este conceito não exprime.

Voltemos a Krenak para entender a essência do Bem Viver: não tirar mais da natureza do que aquilo que podemos devolver. Não é uma coisa pessoal, não pode ser apenas reciclar seu próprio lixo e não se perturbar com o que está acontecendo a outros tantos bens comuns. Enquanto o Bem-Estar nos deixa à vontade para tirarmos vários pedaços da natureza, remover montanhas, usar água demais, consumir a Terra, o Bem Viver sugere que se esteja equalizado com o corpo do planeta. É uma troca. É viver, com inteligência, nesse organismo que também é inteligente, uma espécie de dança cósmica, como explica Krenak.

“Bem Viver não é distribuição de riqueza. É abundância que a Terra proporciona como expressão da vida. A gente não precisa ficar buscando uma vantagem em relação a nada, porque a vida é tão próspera que é suficiente para nós todos”, explica o Xamã.

E como criar, educar, crianças que respeitem o Bem Viver, nesse mundo ocidental tão apegado às coisas e tão pouco respeitador dos bens que se tem na natureza que nos acolhe? Eis uma tarefa que precisa, sobretudo, de pessoas que conseguem enxergar além, fazer contato, passear pelos conceitos que nos são ensinados pelos indígenas sem verter sobre eles um olhar preconceituoso. Para estes, que criticam os que abraçam árvores, Krenak devolve com uma pergunta:

“Nós conversamos, sim, com rios e montanhas. Tem gente que gosta de conversar com carros”.

Aos jovens, como Greta Thunberg, a adolescente sueca que mobilizou o mundo com sua tenaz defesa do meio ambiente e sua crítica assertiva ao mundo dos adultos, o Bem Viver tem uma proposta que deve ser levada às escolas. A sugestão é mudar totalmente a maneira de ensinar, mudar o formato escola. E, aqui, é bom ler o que diz Krenak:

“Não podemos mais continuar atendendo ao pedido do mercado, de formar profissionais, de formar técnicos, de formar gente para operacionalizar o sistema. Nós vamos ter que pensar em ajudar a formar seres humanos para habitar uma Terra viva. Se não formos capazes de nos inspirar para criar corpos vivos para uma Terra viva, nós não vamos experimentar o Bem Viver. O Bem Viver são corpos vivos em uma 20 terra viva. A gente não pode incidir sobre a Terra como se a gente fosse uma máquina retroescavadeira. Nós não temos que formar técnicos. A gente tem que ajudar a formar seres humanos. A ideia de que o ser humano é alguma coisa dada, um evento que já está programado, é um erro. Seres humanos são constituídos. Na história do nosso povo, o corpo, a pessoa é uma realização social, desde quando a gente é sonhado”.

Soa como música para ouvidos que não conseguem mais ouvir, sem desassossego, a degradação que estamos sendo obrigados a ouvir, ver e a participar. Nosso mundo, aquele onde estávamos habituados a viver, tornou-se vítima de um minúsculo, diminuto inimigo, que nos deixa sem ar. Gaia, o planeta vivo, precisa de seres vivos. Mas, que ninguém se iluda: o planeta vai bem e continuará seu ciclo sem os humanos.

“O Planeta pode estar dizendo para a gente: vocês não me escutam? Eu vou desligar alguns de vocês para ver se vocês entendem. Eu tenho o sentimento de que a Terra está desligando milhões de nós agora para ver se a gente entende”, afirma Krenak.

Em nossa já viciada percepção da vida, que exige respostas rápidas e certeiras, já estamos nos perguntando: como? Como educar tais seres vivos, como transformá-los? Krenak não se furta a dar, até mesmo, uma dica para quem trabalha com educação, com cultura.

“Os educadores vão precisar engajar as famílias para dar conta do desafio para frente. Muito provavelmente esse formato que a gente teve, no século XX, chegou até agora, o formato escola, ele vai ter que se espraiar. Sobre o que nós temos na nossa cultura que pode dar pistas para o Bem Viver, para estar nesse mundo de uma maneira criativa, corpo vivo em uma Terra viva, talvez seja observar ao seu redor, muito provavelmente tem uma floresta, uma montanha, então tem tanta vida gritando ao seu redor. Escuta essa vida, dialoga com ela, estabelece relação com ela.”.

Não é possível ser mais claro. Não é possível não ouvir. Talvez seja este nosso mapa da mina.

O livro está disponível, de forma gratuita Aqui

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