Médico não é Deus!
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                          “Apenas paciência e modéstia.       Silêncio. Uma atenção leve, mas sem falhas. É preciso muito amor […] O recém-nascido é como um espelho. Reflete sua imagem. Depende de vocês não o fazer chorar”

Este é um trecho do livro “Nascer Sorrindo”, editado no Brasil em 1975 – e, na França, um ano antes – pelo obstetra francês Frédérick Léboyer. Ele deu nome a um método de nascimento, na época revolucionário, que priorizava um olhar cuidadoso, amoroso, para parturiente e bebê na hora do parto.

Parto Léboyer era feito na penumbra, com uma música clássica ao fundo. As ferramentas usadas para uma cesariana de emergência, caso fosse preciso, eram escondidas por uma simpática toalha de rendas. Simples assim.

Aqui no Brasil, Léboyer teve seguidores, entre eles o obstetra Fernando Estellita Lins, que escreveu “O parto natural” em 1988. Ele preconizava, além do respeito, cuidado, afeto devidos pela equipe médica na hora do parto, a posição de cócoras, como as índias, para o ato em si. Estellita não se limitou a oferecer este tipo de parto para suas pacientes que atendia em consultório particular. Durante um bom tempo, a maternidade pública Praça XV, no Rio de Janeiro, fazia partos humanizados e de cócoras.

A foto mostra uma mãe e a criança no momento do parto. A mãe sou eu, a criança se chama Pablo. Estamos entre outras fotos que ilustram o livro “O Parto Natural”, de F. Estellita Lins, que ajudei a editar

“O parto natural é uma obediência ao princípio ético básico da medicina, “primum non noscere”, isto é, primeiro não causar mal […] é uma condenação às rotinas despersonalizantes, ao intervencionismo inútil. Porém, todos os equipamentos, recursos técnicos e terapêuticos devem estar disponíveis para serem usados. Mas, apenas se necessário”, escreveu Estellita Lins.

Foi, e é, um tremendo progresso. Primeiro, o mundo ocidental precisou se encantar com os avanços da Medicina, já que a partir da Revolução Industrial houve uma sofisticação dos aparatos médicos, prometendo ajudar as mulheres a parirem sem dor.

Mas o pêndulo bateu na parede e voltou. Tanta sofisticação significava, também, uma desconexão com a hora do parto, momento único, que deve ser partilhado entre pai, mãe e bebê. Ficou tudo muito frio, as mulheres passaram a escolher marcar a data para a cesariana, recebiam anestesia e isto dificultava a importante relação primeira entre mãe e filho ou filha. E os hábitos foram mudando. As pessoas começaram a buscar o mais simples, sem abandonar os avanços da Medicina que podem ajudar numa hora difícil.

Devemos a Léboyer, a Moyses Parcionik, a Fernando Estellita Lins e a outros tantos médicos que se debruçaram sobre o tema, o resgate ao parto natural. O fato de a Organização Mundial de Saúde ter emitido recomendações para “estabelecer padrões globais de cuidado para mulheres grávidas saudáveis e reduzir intervenções médicas desnecessárias” veio nessa esteira. Tais recomendações vêm sendo atualizadas.

Editada em 2018, a última diretriz da OMS inclui 56 recomendações baseadas em evidências sobre quais cuidados são necessários durante o trabalho de parto e pós-parto imediato para a mulher e seu bebê. Entre elas, estão:

 “A escolha de um acompanhante durante o trabalho de parto e o nascimento; garantia de cuidados respeitosos e boa comunicação entre mulheres e a equipe de saúde; manutenção da privacidade e confidencialidade; e liberdade para que as mulheres tomem decisões sobre o manejo da dor, posições para o trabalho de parto e para o nascimento, bem como o desejo natural de expulsar (a escolha da posição no período expulsivo) do feto, entre outros”.

Em 2014, ou seja, ainda no governo de Dilma Roussef, o Sistema Único de Saúde fez constar, no site da organização, as condutas da OMS.

É claro que pensei em escrever este texto depois de vir à tona, no fim de semana passado, o pavoroso caso de estupro de mulheres na hora do parto. O médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra, do Hospital da Mulher de Vilar dos Teles, devidamente denunciado por enfermeiras espertas, já está preso e terá um castigo muito menor do que merece, mas ao menos não ficará impune. Um horror.

O caso, no entanto, abre chance de reflexões sobre o momento do trabalho de parto. E sobre a não observância das normas da OMS naquela cena. A mulher não pode ficar completamente separada do que está acontecendo na hora do parto, com aquele lençol fazendo uma espécie de cabana. A mulher não pode ser sedada tão fortemente.

E mais: vamos a um dado prático que pode impedir atitudes bárbaras provocadas por profissionais que não merecem nem este título. Segundo a OMS, as mulheres na hora do parto têm direito de ter alguém da família perto dela. O Hospital de Vilar dos Teles precisa ser lembrado disto.

Se você, que está lendo este artigo, tiver contato com alguma grávida, por favor, lembre isto a ela.

Uma reflexão mais filosófica também é possível, e eu a destaquei no título deste artigo. Por que depositar nas mãos de um homem (ou de uma mulher) decisões sobre nossa saúde? “Médico não é Deus”, afirma o médico homeopata Mauricio Tatar no livro “Cuidar de Si” (Ed. Mauad).

Se a mulher estiver saudável, ela pode e deve ter ingerência na maneira como seu bebê vai nascer. Cesariana ou parto natural, não importa. Mas é muito importante que cada uma tenha consciência sobre o próprio corpo. E a partir de agora, diante do crime do médico anestesista, que expôs que, só no Rio de Janeiro, a cada 14 dias há um estupro em hospital, é importante também ficar atenta às condições da instituição em que vai acontecer o nascimento.

Está difícil mesmo viver hoje no Brasil. É preciso estar atenta e forte, sempre.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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