Marta Porto: “Quais são as pautas da cultura para a sociedade brasileira?”
Foto de Leo Aversa

Uma fartura de reflexões conjugando artes e cultura para entender a cidade como um grande ateliê aberto de invenção vai aportar, no Museu da Lingua Portuguesa, em São Paulo, dias 17 e 18 de junho.  Trata-se do III Fórum Internacional Brasil Cultura 23-30 que se dedica a investigar a imaginação, a ficção, a poesia, as artes e o exercício da criação como fundamentos para a construção de presentes e futuros.

À frente desse movimento está Marta Porto, pensadora crítica, ativista nas áreas de arte e cultura (na foto, de divulgação, de autoria do querido Leo Aversa). Marta crê que o momento é oportuno para atualizar as reflexões sobre cultura, depois de termos vivido quatro anos, sob a gestão de Jair Bolsonaro, quando teve até o desaparecimento do Ministério da Cultura. Polêmica, à época ela defendeu que não se lutasse pelo restabelecimento do órgão. E escreveu um artigo, em que perguntava: “Porque manter um ministério da cultura num governo fascista?”

Hoje o momento é outro. Os produtores culturais têm tido recursos à disposição mas esses financiamentos acabam criando uma deficiência, segundo Marta Porto: “Acabam olhando para o projeto, não para o processo cultural”.

É hora de trazer de volta as reflexões culturais, portanto, mas ancoradas no presente. Neste sentido, o processo iniciado há três décadas por Marta Porto, com parcerias, de tentar colocar as pessoas comuns no centro da discussão das cidades está servindo como potencializador para o Fórum Internacional Brasil Cultural 23-30. Sim, o título é uma ironia com a Agenda 2030, das Nações Unidas.

“Não vamos colar selinhos de ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável), mas vamos falar da vida comum, cultural e política do país baseando em quatro grandes temas: imaginação cívica e democracia; renovação produtiva e trabalho e renda; diplomacia e cooperação internacional; cultura, ecologias e meio ambiente”, disse ela.

Como ponto de partida para as reflexões, Marta lança a pergunta: “Como podemos imaginar algo diferente de tudo que está dado?” Por “tudo que está dado”, entenda-se: estamos entrando na segunda década do século XXI com um severo nível de agravamento das agendas retrógradas e com a crise climática que nos deixa distantes do bem viver.

Quem vai abrir o encontro na segunda-feira é o filósofo e educador colombiano Bernardo Toro, que vê a cultura como forma de construir o público, “o agente que nos ajuda a formar o senso comum da democracia, a criticar”:

Conheci Marta Porto durante a Rio+20, quando ela fez uma exposição sobre meio ambiente no Jardim Botânico e me deu uma excelente entrevista que recebeu o título: “Não existe meio ambiente sem gente”. Nesta semana, quando recebi dela a mensagem sobre a criação do Fórum, pedi para conversarmos e fiz nova entrevista, que você vai ler abaixo.

Em tempo: as vagas para participar do Fórum se esgotaram em cinco dias. Mas haverá transmissão ao vivo pelo Youtube, é só acessar o link: https://www.youtube.com/@BrasilCultura2330/streams. E para saber detalhes sobre a programação e os participantes do Fórum, é só ir ao site.

Abaixo, a entrevista:

Podemos começar a nossa conversa com a provocação feita no folheto/convite para o III Fórum Internacional de Cultura 23-30: Como podemos moldar novas formas de habitar o mundo e as cidades através da imaginação cultural?

Marta Porto – Tenho feito um pouco uma linha do tempo, porque há trinta anos, junto com Élida Murta, Eliseu de Rezende Santos, Euclides Guimarães Neto (Lika) e Maria Helena Cunha, criamos o Objeto Urbano, uma plataforma que criou o seguinte slogan: “Olhe bem a cidade”. Essa plataforma virou uma grande exposição no Museu da Pampulha, estávamos tentando colocar as pessoas comuns no centro da discussão da cidade. Na Rio+20 eu me ocupei do projeto “Meu Meio”, entendendo a questão ambiental e humana como duas coisas intrinsecamente ligadas.  E a cultura sendo, talvez, o grande lugar que conseguiria fazer esses dois fluxos dialogarem, já que quando se pensa o habitar a cidade estamos falando de práticas culturais que às vezes não são naturais, precisam ser aprendidas. E existe o jogo de interesses dos mais ricos sempre se sobrepondo às pessoas comuns, vulnerabilizando os mais pobres, um jogo que toda cidade manifesta neste período agressivo do neoliberalismo.

Qual a semente do III Fórum Internacional de Cultura? E por que o 23-30?

Marta Porto – Essa plataforma começou em 2020, ainda na pandemia, com um curso que eu dei chamado “O poder da imaginação”. Acabou se tornando um espaço de discussão não só de gestores, mas de artistas muito ávidos a tentar discutir coisas que são do território,   muita gente preocupada sobre o quanto a cultura também, nos últimos anos, passou a ser sequestrada pelas corporações. Às vezes o incentivo obriga o gestor cultural a dar respostas que são totalmente estranhas ao fazer cultural. E isso se agravou no período de Jair Bolsonaro como presidente, porque veio associado a uma agenda retrógrada e a uma incapacidade de a comunidade cultural pensar o futuro fora da agenda do incentivo fiscal.

O ex-presidente chegou a extinguir o Ministério da Cultura, como você viveu isso?

Marta Porto – Na época escrevi um artigo em que perguntava: ministério da cultura para quê? Por que manter um ministério num governo de viés fascista? É como se ampliasse a institucionalidade, quando teria sido melhor que ela tivesse sido rebaixada. Ao mesmo tempo, imaginei que aqueles quatro anos pudessem ser um momento de inflexão, de discutir profundamente o motivo pelo qual essa pauta da institucionalidade cultural é tão frágil e por que ela estava sequestrada por uma discussão neoliberal, de dinheiro. Ao mesmo tempo, começamos a ter uma resposta nos movimentos mais progressistas, que abandonaram as macropautas e começaram a discutir micropautas.

Explica melhor isso, por favor.

Marta Porto – Uma das principais matérias da gestão cultural é criar ambientes de diálogo na diversidade. Apostar em práticas que estimulem o pensamento crítico e a pluralidade política e social. Para isso acolher ideias contraditórias e tensionar os limites do que determinados grupos de poder estabelecem como aceitáveis, é um pressuposto daquilo que entendemos como cidadania cultural. No momento que vivemos, de vigilâncias e controles diversos, quando não de censura aberta, o sistema cultural e todo o seu aparato, poderiam rever a forma quase natural que vem acolhendo certos clichês que acabam infantilizando o debate em busca de consensos.

Está faltando senso crítico?

Marta Porto – Sim. E falta, também, algo que é o elemento cultural de qualquer sociedade: não ter medo de discutir as coisas. Isso ocorre na medida que a agenda cultural institucional – não estou fazendo crítica aos artistas, estou falando da gestão cultural – é sequestrada por uma agenda corporativa. E  isso está muito filiado aos incentivos fiscais. Esses incentivos são necessários, mas no campo da cultura eles ficam associados ao marketing, para gerar reputação de marca. Isso criou uma deficiência numa área que, stricto sensu, é crítica ou deveria ser crítica. As pessoas passam a usar um conjunto de artifícios para responder a isso, como colar selo dos ODS em qualquer projeto. Abandona-se, assim, a discussão mais dificil: quais são as pautas da cultura para a sociedade brasileira? O que estamos discutindo em termos de convivência urbana, em termos de privilégios, da diversidade, que é sinônimo da pluralidade política e não só que cada um fala consigo e tenta evitar o diálogo com outro.

O Fórum 23 30 entra para promover esse diálogo?

Marta Porto – Durante a pandemia nós criamos um Laboratório de Emergências Culturais, online, com minigestores espalhados pelo país, e a discussão foi muito em cima do luto cívico. As pessoas perderam outras pessoas, perderam economias e, ao mesmo tempo, perderam perspectiva do futuro. Pensamos então em retormar a discussão de trinta anos atrás para discutir esse espaço simbólico da cultura, como um lugar que fala desse bem comum, de alteridade, e que pressiona para uma mudança que não é só uma mudança de equação, mas é a política sendo exercida no coração da ação cultural. E daí surge o Fórum  23 30, que é pensar o pós Bolsonaro a partir de 2023, meio que fazendo ironia com a agenda 2030. Sem colar selinho dos ODS, mas falando da vida comum, da vida cultural, politica do país. Veja: os ODS, eticamente, são importantes. Eu tenho critica é à estratégia e a muitas das metas porque são um contrassenso ao próprio objetivo ao qual está vinculada. Qual o lugar da cultura? Porque estamos construindo indicadores econômicos?

Qual a crítica à Agenda 2030?

Marta Porto – O Relatório da Oxfam sobre a extrema pobreza que foi lançado no Fórum Econômico Mundial de Davos em janeiro deste ano deixa claro que a estratégia da Agenda 2030 apenas colabora para manter as coisas como elas estão. A força do sistema ONU, e do Pacto Global que fizeram com as corporações, foi uma estratégia que não deu certo, porque a concentração de renda e a pobreza só aumentam.

Você disse que não há senso crítico. Como fazer para criar?

Marta Porto – Estamos vivendo um momento em que os gestores culturais têm boa quantidade de recursos à disposição. Quanto mais dinheiro, mais responsabilidade. Esses financiamentos criam uma deficiência, que é o olhar para o projeto, não para o processo cultural. É quando se perde a perspectiva de território, de cidades, de país. Isso fica muito claro quando tem um Estado (Rio Grande do Sul)  com dois milhões de pessoas afetadas por uma crise climática que já era falada há um tempo e que começa um processo de reconstrução sem se perguntar se isso vai acontecer de novo ou não. Qual a qualidade da discussão cultural que está se dando no país? Bernardo Toro, Nestor Canclini, falam há décadas que a cultura é a forma de construir o público. É o agente que nos ajuda a formar o senso comum da democracia, a criticar.

O governo do presidente Lula tem sido, obviamente, bem diferente do que o anterior com relação à cultura. Como você está vendo?

Marta Porto – Esse Ministério da Cultura tem feito vários movimentos nessa compreensão, por exemplo quando lança o acordo do com o Ministério da Educação, quando trabalha com algumas coisas na área da inovação, quando tematiza a questão dos direitos humanos. Ou ainda quando olha o incentivo fiscal atrelado à ideia de movimento territorial. Entendo que há um esforço grande nessa direção, mas acho que é uma temática que tem que ser acelerada e que não compromete em nada a discussão de um apoio constante à produção do país, que é absolutamten necessário. Acho, inclusive, que tem que reduzir o grau de contrapartidas que se exige de um artista para aumentar o grau de experimentação.

Como assim?

Marta Porto – É na experimentação que se transgride a norma, que se forma novos direitos, que se enxerga coisas que ninguém está enxergando. Todo um fomento domesticado atrelado a um certo conceito de bom mocismo sempre vai estar a serviço de uma institucionalidade caduca. O cientista, por exemplo, tem que desenvolver hipóteses de experimentações e é nisso que ele tem que estar plugado. Um artista deveria estar plugado em ser radicalmente um criador, um cara que inventa coisas, e não necessariamente numa logica de mainstream. Hoje não se tem um embate saudável na sociedade, e a discussão do conflito no embate é inerente à lógica cultural e artística.

Esse lugar da cultura tem que estar longe da representação?

Marta Porto – Sim, e tem que se encontrar para pressionar essa representação de alguma forma. A imaginação é um grande atributo humano de reinvenção e de evolução da espécie. E ela está intrinsecamente ligada à experiência. É diferente do sonho, que é um fundamento. A utopia é uma maneira de pensar um conjunto de coisas que não estão colocadas, mas a imaginação é um insumo da evolução humana. A luz da experiência que estamos vivendo, como a gente imagina algo diferente disso que já está dado?

E o que já está dado?

Marta Porto – O que está dado é a reparação ou é reinvenção, que é o que vem acontecendo na discussão ambiental. Descarboniza aqui, faz um puxadinho ali. A imaginação é colocar coisas num marco que as experiências e as evidencias nos traduzem que fracassamos em alguns pontos. E isso é ciclo histórico. No fim da Segunda Guerra não existia a Liga das Nações, o sistema ONU. Em 1987 não existia noção de sustentabilidade. Como se imagina coisas que não existem para responder ao tempo presente, não ao futuro? Abandonamos a noção de ecologia, que é muito mais importante porque é sistêmica, enquanto a sustentabilidade é uma visão eurocêntrica, que cuida do desenvolvimento sem abrir mão de nada, num certo sentido.

Podemos dizer que tudo isso será debatido no Fórum que começa na segunda-feira?

Marta Porto – Sim, e vamos abrir o evento com a fala de um sábio, Bernardo Toro, que tematiza o debate público há muito tempo. Eu quis abrir com um sábio porque acho muito legal ouvir a juventude, mas ela não é a minha geração. E eu quero muito entender o que a minha geração ainda tem a oferecer para o debate público, ou os grandes filósosfos, que ainda estão fazendo perguntas que não estão sendo feitas por esse mundo narcísico que a gente vive hoje. Como diz Ailton Krenak, vamos prestar atenção no presente. Vamos fazer com que toda a discussão esteja sempre ancorada no hoje e não no amanhã. Não tem futuro sem presente, como ele disse.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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