Quando, em 1987, Chico Buarque escreveu a canção “Uma Menina”, não foi somente a denúncia contra a violência que ronda a infância na periferia dos grandes centros que ele conseguiu espalhar para além das nossas fronteiras. No verso “Tivesse a vida para escolher/e era talvez ser distraída o que ela mais queria ser”, Chico fez ainda o que sabe fazer melhor: atingiu, em cheio, o coração e a alma das mulheres.
Por questões tais que dizem respeito ao eterno lugar de inferioridade que nos foi reservado desde sempre em todas as sociedades, tudo nosso está ligado à seriedade. Ser boba, distraída, gargalhar, errar, brincar… não faz parte de nosso perfil. Nada disso acontece sem que se pague um preço.
Certo dia, coube-me ouvir a entrevista de Karla Concá feita por Juliana Amador no site SDG, na qual este assunto surgiu. Karla Concá é palhaça, atriz, diretora, dramaturga, e fundou o grupo “Maria das Graças”, só de mulheres palhaças. E ser palhaça, aprendi durante a entrevista, “é convidar o outro a rir junto, é ser boba, é errar”. Ou seja, é tudo isso que não está no universo feminino tradicional.
Aqui vale dizer que estou me referindo às mulheres de gerações passadas, na torcida para que as coisas, realmente, estejam melhores hoje em dia.
Na esteira da entrevista que ouvi no SDG, e juntando aqui meus soltos pensamentos, fiz o link do verso da menina distraída do Chico com a fala de Karla Concá.
Fiquei curiosa para ouvir mais o que a palhaça de Karla tem a dizer. E quis trazer aqui para o blog, compartilhar com vocês e ensejar reflexões. Para isto, solicitei uma entrevista com ela.
Leiam abaixo minha conversa com a dona da palhaçaria feminina, que já ajudou 15 grupos de palhaças em todo o Brasil a criarem seus festivais locais. Aos homens, um spoiler: a entrevista contém uma tonelada de feminismo.
O que é ser palhaça?
Karla Concá – É ter esse ser risível dentro de si, que lhe representa no mundo, esse olhar que você tem para as suas defesas, quando alguém faz alguma coisa e você responde de maneira autêntica. Eu desenvolvi este ser, eu estudei e estudo para isso. E, nas aulas de formação que ministro, eu ajudo as mulheres a descobrirem este ser dentro de si, essa lógica de humor que é muito pessoal, que cada uma de nós tem a sua vida inteira, desde que criança. Vai no seu álbum de família e pega a foto de criança que você mais gosta, percebe seu olhar, seu sorriso, sua pose: a sua palhaça está lá. É porque as crianças, como são sem filtro, respondem de maneira engraçada, o que a sociedade percebe como algo fora do padrão. E à medida que ela vai crescendo, começam os recados: “para de rir alto, senta direito, olha os modos, menina!” Tudo isso já vai formatando um “limite” à autenticidade. E quando a criança entra para a alfabetização, tudo piora.
Por quê?
Karla Concá – Porque é o momento de entrar no padrão social. Momento em que as mães e os pais giram a chave e começam a fazer comparações, a cobrar padrão de comportamento: o filho da amiga já lê e o dela não, por exemplo. Antes disso, a criança não tem compromisso com nada, a não ser com as brincadeiras. Na alfabetização, a hora do recreio diminui, a criança fica mais tempo em sala de aula, deixa de fazer contato com o mundo externo. E começa a competição. Quem tem a letra mais bonita, quem já aprendeu a ler? É quando a criança deixa de ser autêntica para tentar ser igual ao outro e, assim, agradar aos pais.
Como a palhaçaria entrou na sua vida?
Karla Concá – Foi uma sorte minha. Comecei a ser palhaça aos 23 anos, hoje tenho 55. E digo que foi uma sorte porque aprendi muito cedo esse lugar do erro como acerto. O acerto descansa no erro, ele precisa descansar em algum lugar. E quando chega o erro, o acerto diz: ‘ah, que bom que vc existe, porque eu posso tirar uma folga, eu posso tirar umas férias’. Só que não pode, porque a sociedade não permite que você erre. Eu dou aula de formação de palhaças e percebo que as alunas ficam muito emocionadas quando começam a ver que o erro delas é o grande sucesso.
Como você vê, culturalmente, este momento da nossa sociedade?
Karla Concá – Eu acho que temos hoje um problema de dramaturgia muito sério. Porque o humor, hoje, é o lugar onde se ri do outro. Não é rir com o outro. Se eu rio do outro, eu exponho o problema dele e vou ganhar seguidores. Rir do outro dá ibope. É preciso mudar isso, mas mudar dá trabalho. Além disso, os homens que estão no poder não querem a mudança, porque a forma de “rir do outro” tem dado certo há muitos anos. Nossa função, como palhaças, é mostrar para o outro que está tudo bem ser quem você é. Eu me coloco no estado de autodemolição a favor daquela pessoa. Eu não vou rir dela, mas vou chamá-la para rir de mim porque rindo de mim ela está se aceitando como ela é. É nesse momento que acontece a cura, a celebração.
Então as palhaças têm uma função social, é isso?
Karla Concá – Sim, temos uma função social. Quando uma mulher entra na palhaçaria, ensinamos que o propósito é fazer rir, é emocionar, é fazer refletir e uma série de coisas. Para mim, é uma grande diferença para os palhaços homens quando eles pegam uma pessoa da plateia e riem, por exemplo, de algum defeito dela. Em nosso caso, a dor da pessoa é respeitada porque a palhaça está rindo dela mesma e se oferecendo: ria de mim.
Você começou a palhaçaria feminina no Brasil. Conte um pouco sobre esse movimento.
Karla Concá – As mulheres entraram na palhaçaria só na década de 80, na Europa, com Gardi Hutter e, no Brasil, com as “Marias das Graças”, grupo criado por mim em 1991. As mulheres não tinham nenhuma referência nesse setor, os homens tinham milhares, aliás, foi isso que fez com que eles se acomodassem no “rir do outro’”. As mulheres, então, tinham um discurso de não haver lugar para elas na palhaçaria. É simples: não havia porque elas eram (e ainda são em vários momentos) o motivo do riso. Elas então foram ler os dois livros que são a biblia da palhaçaria e decidem: ‘não queremos ser palhaça se ser palhaça é isso’. Muitas desistiram, mas outras, não. Graças às deusas, o meu grupo seguiu em frente – já dirigi mais de 20 espetáculos de mulheres, já criei três cabarés de palhaças no Brasil. Minha dramaturgia é botar essas mulheres para escrever e falar o que elas querem falar sobre elas no mundo. Não é ficar feliz numa vingança (referência ao caso da masturbação coletiva em Sao Paulo).
Qual a diferença entre o engraçado e o ridículo?
Karla Concá – O engraçado é o que você provoca, e o ridículo é o que você é. Você provoca a ser engraçado, faz graça para você mesmo. Acho que todo mundo tem que rir de si mesmo: as mulheres fazem isso bem. Os palhaços mentem em relação a isso. Tem uma fala de palhaço que diz que por trás de um palhaço existe um homem triste… Quando ouço isso, penso: ‘Mas.. gente… por trás de uma palhaça existe uma palhaça trabalhando muito, e ela é ela mesma!’
Apesar de as palhaças rirem de si, elas têm mais dificuldade em se deixar ser boba, em distrair. Por quê?
Karla Concá – É um contrafluxo da exigência que o sistema faz… a mulher tem que dar conta, ser responsável, tudo nosso está ligado à seriedade desde cedo. Furam as orelhas da menina bebê para ficar bonita, botam meia-calça nas garotinhas, aquilo é um inferno, pinica… mas é para ficar bonita. Se você se distrair, vem alguém e fura sua orelha, entende? E isso é assim também na vida adulta, repare nas praças: a gente vê os homens jogando cartas, dominó. Dificilmente você vê mulheres ali, porque elas estão em casa cozinhando, ou cuidando dos netos, ou fazendo um curso. Repara em almoço de família. Os homens se levantam e vão conversar no cômodo do lado, enquanto as mulheres “se distraem” lavando a louça e arrumando tudo. Veja, não estou criticando os homens, mas acho que as mulheres também merecem estar na pracinha jogando, merecem ir para o cômodo ao lado…E é sobre isso que falo. Digo para as minhas alunas: sejam bobas!
Você é otimista com relação ao futuro da nossa sociedade?
Karla Concá – Eu tenho fé, sou positiva. Acho que estamos caminhando para melhores condições, embora mudança mesmo eu só acho que vamos ver daqui a algumas gerações. Vejo uma melhora nas familias, nas crianças, essa entrada das pessoas trans na sociedade eu vejo como uma possiblidade de mudança, porque elas são revolucionárias, transgressoras, com outra formação de família. Acho que são importantes como colaboradoras de uma nova mudança. Mas a gente tem que estar atenta sempre. Não pode dormir. Porque qualquer entrada de outro bolsonaro, o patriarcado toma conta e a gente volta cinco casas.
Recentemente tivemos um caso horroroso de machismo, naquela faculdade de São Paulo, quando os “médicos” recém-formados fizeram uma ação de masturbação coletiva. Isso não deixa a gente muito otimista, né?
Karla Concá – Eles estão no lugar da cadeia alimentar mais alta. É um combo: o patriarcado e o falocentrismo. Botei o nariz de palhaça e comecei a brincar com aquela fala dos dois centímetros, muita gente dizendo que eles deveriam ter vergonha do tamanho do pênis. A arte está aí para isso, ok, e as pessoas queriam se vingar dessa forma, mas eu digo que é tiro no pé. O sujeito não tem vergonha dos dois centímetros, senão não faria o que fez. O que me preocupa, de verdade, é outro número: o cinco. Porque isso aconteceu há cinco meses e nunca foi comentado. Olha o poder. Ficar falando sobre os dois centímetros não muda nada. Vamos botar foco nas mulheres, vamos alimentar o que tem que ser alimentado e abafar o que não deve existir.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.