Pequeno afluente do Rio Paraguai, o Rio Branco foi palco de uma peça teatral encenada pelos indígenas da etnia Zoró para os jornalistas na Aldeia Escola Anguytatua, em Mato Grosso, no município de Rondonópolis, a mais de 200 quilômetros da capital do estado. O ano era 2008 e eu estava entre os jornalistas que formaram aquela privilegiada plateia.
Essa viagem não me saiu da memória desde que pensei em compartilhar neste espaço alguma história indígena para comemorar o 19 de abril. A propósito: desde 2022, a nomenclatura Dia do Índio foi substituída, por lei, para Dia dos Povos Indígenas, correção pedida por lideranças para abranger a pluralidade dos povos, que hoje somam mais de 1,5 milhão de brasileiros e 305 etnias.
Voltando a dezembro de 2008, quando eu e o fotógrafo Carlos Ivan (a foto de reprodução que ilustra este texto é de sua autoria e foi publicada no caderno Razão Social em dezembro de 2008) aceitamos o convite feito pela Fundação Banco do Brasil para acompanharmos uma gincana cultural na aldeia Zoró. A Fundação tinha dado compuradores para os indígenas e queria que reportássemos a entrega. Na época, eu era editora do caderno “Razão Social”, que circulava encartado no jornal O Globo, e Ivan era o fotógrafo que sempre me acompanhava nas reportagens. Além de nós dois, havia equipes de outros veículos de mídia, televisão inclusive. Talvez isso tenha animado os indígenas a montarem aquela peça teatral, sem enredo ou falas, com um roteiro simples, de fácil entendimento e, ao mesmo tempo, de uma profundidade inquietante para os não-indígenas. A reportagem foi publicada em janeiro de 2009, e reservei um espaço de fôlego para contar minha experiência como plateia de uma peça sobre um momento tão inquietante para os indígenas. Na época, havia cerca de 650 Zorós no Brasil, e esse número hoje é de 755.
O espetáculo começou à tarde, logo depois do almoço, e foi acompanhado também pelo cacique Benamo, que se comunicava na língua tupi-mondé e era traduzido por um de seus filhos, Zawandu. Alguns atores se vestiram com roupas ocidentais e puseram barba postiça, mas como não havia falas, era difícil acompanhar. O mote da peça era mostrar o momento exato em que os indígenas da etnia Zoró fizeram o primeiro contato com os brancos, o que aconteceu em 1979, portanto, a pouco menos de três décadas daquela momento. E exatamente naquela beira do Rio Branco.
Os indígenas estavam excitados, se confundiam com as cenas e nos deixava meio aturdidos. A peça começou para valer quando uma canoa fabricada por eles próprios, com casca de Roxinho, uma árvore local, lentamente veio descendo o Rio Branco, conduzida por dois indígenas. Ela se aproximou da margem e voltou para trás. Naquele instante, o cacique Thoatore, um dos atores, começou a interpretar uma aflição à beira de uma pedra, com gestos de espanto, medo, aflição, num vai-e-vem incessante, em círculos.
A dramaturgia era para avisar que ele acabara de avistar outra canoa, na direção contrária à primeira, chegando perto com indígenas caracterizados, aqueles com barba postiça, calça comprida e camisa de manga. Eram os brancos. O primeiro contato mostrou indígenas amedrontados e brancos solícitos, oferecendo açúcar, refrigerante, panelas, armas, até um tênis. A canoa dos brancos era motorizada, e de lá eles não saíam: jogavam os presentes e iam embora.
O grupo de indígenas que circundava Theodore passou a experimentar aqueles objetos. Gostaram do açúcar, lambiam o refrigerante, demonstravam medo das armas e não sabiam muito bem o que fazer com o único pé de tênis. A peça continuou, e percebemos que tinha havido uma passagem de tempo. No segundo encontro, os brancos encontraram os indígenas um pouco menos temerosos, ofereceram mais presentes e, dessa vez, foram convidados a ficar. Desce o pano.
O segundo ato começou com outra cena. A interpretação, dessa vez, foi muito mais definida. Os indígenas, depois de aceitarem todos os presentes, passaram a tossir, espirrar, bem alto, lá do meio do rio, para que a plateia, cá na beira, pudesse ouvir. Sim, nós ouvimos e entendemos. O contato com o branco levou doença aos indígenas. Nesse momento, o cacique Benamo auxiliou a plateia a acompanhar melhor a cena, explicando o que víamos, já que ele estivera presente no momento do primeiro contato. O texto abaixo reproduz o que ele disse, à época, aos jornalistas, sempre com Zawandu como intérprete:
“Antes era difícil fazer a roça com aquele machado tão pequeno. O branco nos apresentou outro, melhor. Mas eu não sabia que, junto com essas coisas boas, vinha também tanta doença e tristeza. Só que a gente não tinha outra coisa para fazer, porque as terras foram ficando pequenas, os brancos foram tomando tudo. Já fui até Manaus (a mais de dois mil km dali) aqui por esse rio, na minha canoa, sem encontrar nenhum branco. Hoje não dá para chegar nem até ali”, disse ele.
Perguntei-lhe: “E se pudesse voltar no tempo?’
“Se pudesse voltar, eu não teria feito contato com os brancos”, respondeu-me, sem surpresa.
Essa é a minha homenagem para os verdadeiros guardiões da floresta, função reconhecida até pelas Nações Unidas em relatório publicado em março de 2021. E, devo confessar, que a um só tempo eu senti a emoção de estar assistindo aquela peça e fiquei bem constrangida por estar ali, naquele momento, no papel de vilã. São ossos do meu ofício.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.