Histórias e soluções do mundo pandêmico
We-Are-Not-Drowning

Estávamos em 2015 quando ganhei de uma grande amiga o aparelho celular 5S da Apple. Ela tinha comprado um mais novo, e o aparelho que eu usava era muito, mas muito mais antigo. Com uns dez anos de uso, já estava na categoria “arcaico”, portanto, ineficaz.

O 5S esteve comigo até sexta-feira passada, quando, pela manhã, fui conferir as notícias e percebi que, apesar de ter estado a noite toda na eletricidade, ele estava sem bateria. Fiquei preocupada porque, como não tenho telefone fixo, a falta do celular me deixa sem comunicação. Pedi ajuda a vizinhos, havia um problema no cabo, mas… na verdade, há tempos eu não recebia a notificação da empresa dizendo que iria atualizá-lo. Enfim. Noves fora, tinha chegado a hora de trocar meu aparelho de celular.

Não sou muito apegada a coisas. Mas não gostei nada de ser obrigada a fazer uma despesa com a qual eu não estava contando. Parecia aquele momento, no jogo Banco Imobiliário… “recue quatro casas porque você vai ter que trocar seu celular”. Mais ou menos isto. Lá fui eu para a loja, aproveitando que tenho pontos por ser cliente antiga e leal da operadora.

Trouxe de lá um celular novo, mas tive que optar por outra marca por causa dos preços. Certamente que este terá mais autonomia de bateria e uma câmera mais potente, além de uma memória maior. Por outro lado, pesa uma tonelada. Comprei um carregador novo e vou deixar o meu velho ali na gaveta…

Toda essa operação me fez pensar em consumo. E pensar em consumo me lembrou que em novembro os holofotes do mundo estarão voltados para Glasgow, no Reino Unido, onde vai acontecer a COP26, ou Conferência da ONU sobre o Clima, cujo propósito será, como sempre acontece nessas reuniões, traçar políticas públicas a nível mundial para tentar travar o avanço do aquecimento global. O último relatório dos cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês) não traz boas notícias a este respeito. O planeta aquecerá 1,5º em todos os cenários já nos anos 2030.

Pela primeira vez na história dos relatórios do IPCC, os pesquisadores dizem que não há a menor dúvida de que a ação humana é a responsável por este aquecimento. O consumo desenfreado passará a ser, dessa forma, novamente objeto de debates.

É este o link com a situação que vivi na sexta pela manhã. No meu caso, consegui manter um celular – que já havia sido usado – por mais seis anos. Há quem troque de ano em ano, por nada, só porque surgiu um novo, com uma resolução maior na câmera. Não estou condenando ninguém, pelo contrário. Meu objetivo é fomentar o debate com informações. O consumismo é, então, o grande vilão? Um dos alertas dados pelos cientistas é que estamos vendo, e veremos cada vez mais, eventos compostos, ou seja, ondas de calor e secas que ocorrem próximas umas das outras ou ao mesmo tempo. Isso dá pouca chance de as comunidades vulneráveis se refazerem. Sim, este o ponto: os mais prejudicados são aqueles que não têm condições de consumir.

A norte-americana Annie Leonard ficou conhecida quando criou, em 2009, o vídeo “A História das Coisas”, que virou livro lançado aqui no Brasil pela Editora Zahar. Ali ela fazia um apanhado interessante sobre o caminho das coisas que compramos até virarem lixo. Em 2013, porém, a expert em desenvolvimento sustentável e em cooperação internacional lançou “The History of Solutions”, ainda sem tradução aqui no Brasil. Neste vídeo, Leonard deu um passo à frente e denunciou o sistema econômico que nos rege, desenhado por pessoas que criaram regras para os vencedores. Segundo essas regras, a meta é, sempre, Mais.

“Mais estradas, mais shoppings, mais dinheiro sendo gasto. É o PIB.  E é o que os economistas chamam de crescimento. Mas nada disso leva em conta uma vida melhor para todos nós”, conclui Annie Leonard.

Vale registrar que o ex-presidente da França Nicolas Sarkozy já havia pensado nisto. A seu pedido, os prêmios Nobel Joseph Stiglitz e Amartya Sen fizeram um relatório com sugestões que poderiam servir para substituir a medição de riqueza atual. O estudo concluiu que o desenvolvimentismo estava destruindo mais do que criando coisas boas para a humanidade. Em 2009, com a pesquisa em mãos, Sarkozy expôs este pensamento numa reunião de líderes, pediu mais foco em qualidade de vida e sugeriu que se acabasse com o “fetichismo do PIB”.

Tudo isso é história que nos trouxe até aqui, até nosso mundo pandêmico. O ano de 2021, que será lembrado como o segundo ano da pandemia causada pelo Corona Vírus, vai terminar com a COP26 e começou com outro grande encontro de líderes mundiais no World Economic Fórum em janeiro, em Davos, na Suíça. Preocupados com os rumos da doença que se espalhava, eles se reuniram por vídeo conferência e debateram sobre um novo modelo econômico. O movimento recebeu o nome de “Great Reset”, que em tradução literal pode ser chamado de “Grande Reinício”.

O criador do Fórum, Klaus Schwab, escreveu um livro em parceria com Thierry Malleret , em que estão documentadas algumas das preocupações dos nossos tempos. E no qual estão traçados alguns caminhos para a mudança. Entre as preocupações dos líderes estão a financialização excessiva, a polarização política, o déficit público crescente e a falta de uma governança global, além, é claro, da degradação ambiental. Se não foi, pelo menos até agora, a pandemia que mais causou mortes –  menos do que 0.006% da população mundial, enquanto a Peste Negra dizimou 30 a 40% das pessoas no século XIV – a Covid-19 deixa um rastro de possibilidades de mudanças num mundo muito mais interdependente.

As questões de justiça social estarão em evidência no mundo pós-pandêmico, assim como as questões ambientais. E, segundo a dupla Schwab/Malleret, “o pré-requisito absoluto para o mundo pós-pandêmico terá que ser maior colaboração não só dentro das nações como entre elas”.

Não há moral nessa história. Nem conclusão possível, ainda. Sigamos em frente, tentando soluções.

(PS): A foto que escolhi para ilustrar este post foi feita em 2013, durante manifestação dos Guerreiros do Pacífico - um grupo de moradores das nações-ilha do Pacífico. A história deles está no site 350.org (https://350.org/), movimento internacional que combate o uso dos combustíveis fósseis. O texto na faixa diz: "Nós não estamos afundando, nós estamos lutando".
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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