Fome, miséria, guerras… e o novo normal que cada um pode transformar

Em 2020 havia 59,7 milhões de pessoas passando fome na região da América Latina e Caribe. Um ano depois, este número foi aumentado em 13,8 milhões de pessoas. Chegamos, no fim do primeiro ano da segunda década do século XXI, ao incômodo e vergonhoso número de 73,5 milhões que vão dormir diariamente sem ter ingerido a quantidade suficiente de comida (vitaminas, sais minerais, carboidratos, proteínas…) que são fundamentais para o desenvolvimento do ser humano.

Criança brinca num campo de refugiados em Juba, no Sudão. Foto de Petterik Wiggers/Hollandse Hoogte publicada no livro “Confronting Hidden Threats to Sustainability – Estado do Mundo 2015 – The Worldwatch Institute

Mas há o outro lado. Também na América Latina e Caribe, a taxa de obesidade entre adultos cresceu. De 16,6% no ano 2000, para 24,2% em 2016. Dados recentes do relatório da OMS divulgado em maio do ano passado dão conta de que 28,6% da população adulta das Américas está obesa. Para que fique bem claro: segundo a OMS, obesidade já é uma doença crônica, que precisa ser enfrentada com rapidez.

Os dados acima estão no site do Instituto Fome Zero.

São duas situações que expõem outro dos grandes desafios da humanidade. Na verdade, todos os desafios estão interligados. A pandemia ataca mais os vulneráveis; os eventos extremos atingem mais os vulneráveis; a fome só ataca os miseráveis. A obesidade também, já que as gorduras encontradas nos alimentos processados e baratos é que engordam.

 E os miseráveis são os excluídos de um sistema que suporta a seguinte situação, exposta pelo último relatório da ONG Oxfam:

“Os dez homens mais ricos do mundo dobraram suas riquezas durante a pandemia, enquanto 99% da humanidade viu sua vida piorar” (https://www.oxfam.org.br/noticias/concentracao-de-riqueza-sem-precedentes-exige-indignacao-e-luta-constante-para-transformar-realidade/) . 

Exatamente neste mundo, dos desafios e imbróglios recorrentes, alguns líderes mundiais estão discutindo, neste momento, se entram em guerra ou não na Ucrânia (leiam aqui, caso tenham interesse: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60201700) . Por favor, atentem para o fato de que eu não estou, de maneira nenhuma, assumindo um lado nesse horror. Para mim, parece que estou assistindo uma peça ruim, com atores pífios, roteiro sem pé nem cabeça.

Mas, como sabemos, não é bem assim. Do que se trata, na briga entre os mais fortes, é de mais acúmulo. Seja de território, seja de bens naturais (que deveriam ser de todos), seja de capital humano, seja cultural. Há sempre uma necessidade de reter em vez de dividir. O que nos torna muito distantes do mundo natural.

Há, entre meus pares jornalistas, alguma reflexão no sentido de que os leitores estão fartos de ler e ouvir tanta notícia ruim. É como se o fato de verem escrita ou comentada a realidade, fizesse de todos nós um pouco cúmplices, já que não fazemos nada para mudá-la inteiramente. E a culpa pesa sobre os ombros, mesmo que, de fato, pouco possa ser feito individualmente. Prestem atenção: eu disse “pouco”, não disse “nada”.

Neste sentido, gosto de ouvir Ailton Krenak, xamã indígena, quando ele ataca o tal “novo normal” tão esperado por tantos.

“Novo normal é um discurso muito próximo do negacionismo porque ele nega o instante que estamos vivendo e aspira a um outro lugar que não é esse que temos agora (…) Com enchente, com influenza, tsunami, com o que for: vamos lidar com a realidade. A realidade não é favorável. Então, a gente tem de ter coragem de viver radicalmente, de ser radicalmente vivo. De não ficar aceitando a chantagem de um amanhã fajuto que estão nos prometendo”, disse ele ao site “Rede Brasil Atual”.

Escolher um governante que seja sensível à situação de fome e tente organizar políticas públicas para acabar com ela, já é algo que podemos fazer. De quebra, este governante também não ingressaria em aventuras de guerras e limitaria o orçamento das armas. Educação e Saúde, sim, têm que ser as pastas mais importantes e mais recheadas.

Fora isso, no âmbito particular, como diz Krenak, é espanar o tal “novo normal”. E abraçar causas. Quer seja se tornando voluntário em algum movimento social ou ambiental de ajuda ao próximo, quer seja levando consigo, na bolsa, alguns alimentos para serem doados a sem-teto nas ruas, é possível agir no âmbito da comunidade.

E, no dia a dia, basta olhar para o lado. Fazer contato. Haverá situações que merecem um olhar diferente, em todas as áreas. Vale a pena perceber.

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