Havia uma árvore no meio do caminho e essa árvore foi demolida para que as pessoas pudessem passar sem correr o risco de serem interrompidas por sua grandeza.
Cerca de quinze árvores, em pouco tempo de ventos fortes, caíram nas ruas cidade do Rio de Janeiro ontem. Era o Dia da Árvore. Prejuízo para carros e para o trânsito, felizmente nenhuma vítima humana. No grupo do zap do qual faço parte, e que debate sobre a arborização urbana, especialistas cravaram o diagnóstico: “Só pode ser árvore que foi cimentada”.
Sim, isso acontece. Dia desses mesmo, passei por uma calçada que estava sendo reformada. Nela existe uma árvore linda, frondosa, mas que está totalmente inadequada porque atrapalha a passagem. Não é culpa dela. Mas os operários, querendo mostrar serviço, decidiram cimentá-la para atrapalhar menos. Chamei a atenção para o fato, e o porteiro me respondeu, sem humor: “Essa árvore nem tinha que estar aí, outro dia uma mulher quase caiu por causa dela”.
Quase caiu quer dizer que não caiu, pensei. E não cairá, se a pessoa usar sapatos adequados e, principalmente, não usar telefone celular enquanto estiver caminhando. Mas, seja como for, a árvore será sempre a culpada. Que sina essa, da humanidade, em se achar sempre mais inteligente, esperta, forte e merecedora de estar no planeta, acima de todos os outros seres vivos.
Vale refletir a esse respeito, sobretudo quando estamos a cerca de dois meses da Conferência das Partes sobre o Clima, COP26, que vai acontecer em novembro na Escócia. Será uma reunião importante, a chance de os líderes e tomadores de decisões ampliarem o debate e as soluções para enfrentar o aquecimento global. Mas pode naufragar, segundo o secretário geral da ONU, Antônio Guterres, alertou na Assembleia Geral da organização que aconteceu ontem em Nova York.
Guterres fez um discurso contundente, pedindo solidariedade e intervenções, já que um relatório da COP editado há poucos dias mostra que os países pouco fizeram no sentido de baixar as emissões de carbono e alcançar a meta do Acordo de Paris. Na capital francesa, em 2015, os líderes reunidos decidiram que agiriam em conjunto para não permitir que o aquecimento global ficasse acima de 1.5 graus Celsius até o fim do século. Mas, de lá para cá, as emissões só fizeram crescer.
O presidente das Ilhas Maldivas, Ibrahim Mohamed Solih, ilustrou sem retoques o que significa, para a pequena nação-ilha do Pacífico, a diferença entre aquecer 1.5 grau e 2 graus: “É uma sentença de morte para as Maldivas”. Solih discursou também na Assembleia Geral da ONU, que este ano elencou a questão climática como um dos grandes desafios da humanidade do século XXI, além da pandemia, da desigualdade, da fome.
Ocorre que, para limitar o aumento da temperatura, é necessária uma redução das emissões em 45% até 2030 e zerar até 2050. E será preciso agir em conjunto, países ricos ajudando os pobres, tendo a crise climática como foco prioritário, para que se consiga este objetivo. Ou, como diz Guterres, a COP26 já vai nascer fracassada.
O alerta não é novo, assim como não é novidade, para os ativistas ambientais, lidarem com a quase passividade da maioria dos líderes globais diante de uma situação absolutamente emergente. É inexplicável. No início do século ainda se podia dizer que o meio ambiente não era um assunto considerado prioritário porque havia um caráter anódino rondando o tema. Hoje, não.
Basta ver, por exemplo, o último relatório da Organização Mundial de Meteorologia (WMO na sigla em inglês, segundo o qual, nos últimos 50 anos, mais de onze mil desastres foram atribuídos a riscos relacionados ao clima, envolvendo dois milhões de mortes e US $ 3,6 trilhões em perdas econômicas. Já um relatório da ONU divulgado em junho deste ano dá conta de que pelo menos 1,5 bilhão de pessoas foram diretamente afetadas pela seca neste século, e o custo econômico ao longo desse período foi estimado em US$ 124 bilhões. Não é pouca coisa. Mas, também neste ponto, a desigualdade social mostra suas garras potentes, já que os mais vulneráveis ao risco são os países pobres, ou seja, aqueles que emitem menos emissões de carbono.
Voltamos assim ao discurso do presidente Ibrahim Solih, das Ilhas Maldivas, que abriu a sessão da Assembleia anual das Nações Unidas em Nova York. Com outras 38 nações-ilhas, Maldivas faz parte da Alliance of Small Island States (Aosis), associação criada na última década do século passado para representar esses países que, por conta da própria geografia, estão no topo do risco climático. Muitos já estão sentindo o avanço do mar, o que impede a agricultura em alguns territórios.
Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês) de 2019 mostrou que o aumento do nível do mar se acelerou devido ao aumento combinado da perda de gelo das camadas da Groenlândia e da Antártida.
Como já deu para perceber, o debate sobre as questões climáticas é uma espécie de novelo. Uma informação puxa a outra, que puxa a outra. Um pensamento vai se ligando a outro e a outro mais. Essa interconectividade é característica de nossos tempos, e precisaremos aprender a lidar com ela. Das árvores cimentadas chega-se ao drama das pessoas que vivem nas ilhas do Pacífico porque, no fundo, estamos falando da mesma coisa.
O xamã Ailton Krenak faz uma imagem interessante. A sensação que ele tem é que nós estamos brincando de ser humanidade. Como se fossemos eternas crianças, sem responsabilidade de nada com o ambiente que nos cerca. Está mais do que na hora de crescermos e de tratarmos as árvores, por exemplo, como seres vivos que precisam respirar. Ou, admitir que jogar cimento em sua base é uma forma de assassinato e pagar por isso.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.