Piolim era magro, comprido, e sabia se contorcer. que nem barbante. Por isso ganhou este apelido. Seu nome verdadeiro era Abelardo Pinto, nascido em 1897, na cidade paulista de Ribeirão Preto, dentro da lona de um circo. Piolim foi o maior palhaço brasileiro, alguns dizem mesmo que foi o maior palhaço do mundo. É um orgulho dos circenses que, em homenagem, cravaram o dia 27 de março como Dia Nacional do Circo.
Mas, neste ano de 2021, não houve muita comemoração. E não só por causa do vírus Corona, o inimigo invisível do mundo, que já matou mais de 300 mil brasileiros. A tristeza está batendo no coração também porque a Escola Nacional do Circo Luiz Olimecha (Enclo), que desde 1982 faz parte da paisagem da Praça da Bandeira, na Zona Norte do Rio de Janeiro, está inativa. A notícia repercutiu com tristeza entre os 60 alunos: o prédio e as dependências da instituição serão, até 2023, exclusivos para uso burocrático da Funarte, entidade que gere o espaço.
Além disso, não há um plano de volta às aulas. Na verdade, nem há mesmo a garantia de que os alunos da Enclo voltarão à ativa e, já que não haverá mais o prédio da Enclo, para onde irão os estudantes?
Durante um tempo, quando o Metrô fez obras para erguer uma estação na Praça da Bandeira, a Enclo ficou fechada. Mas, quando voltou… foi um sucesso. O ano era 2013! O espaço foi totalmente reconstruído, voltou a ter uma lona, ganhou uma sala de dança, uma biblioteca. A reformulação foi um acordo entre o governo estadual da época e a Funarte. De lá até o ano passado, quando cerrou a lona por conta da pandemia, a Enclo era lugar de muito aprendizado.
Quem conta a história do processo de criação da Escola é a historiadora e professora Ermínia Silva. Nascida na quarta geração de circo do país – “São 15 primos que, literalmente, nasceram na barraca” – Ermínia Silva está entre os muitos profissionais que se mobilizaram para evitar que a Enclo saia de onde está. Para ela, a Enclo é um “patrimônio cultural brasileiro e latino-americano e não pode deixar de acontecer na Praça da Bandeira, não s pode pensar em outro projeto fora da Escola. Ela foi reformada para receber todas as técnicas e formatos de ensino da linguagem circense”.
É preciso, portanto, defender a Enclo.
E defendê-la significa também estar atenta ao processo de toda uma movimentação societária ocidental que vai se consolidando na primeira metade do século XX aqui no Brasil, conta a historiadora Ermínia. Um processo de transição de saberes, de conhecimento, a partir da oralidade.
“O circense é isso, os artistas vão ensinando na oralidade, entendendo a oralidade como esse conjunto de práticas, de saberes, ferramentas. A partir do final do século XIX, início do século XX, tem-se toda a produção de materialidade, no sentido de que vão se formar também professores, ideologicamente por uma construção mental que vai dar materialidade à ideia de que na transmissão oral do saber não se tem produção científica. De que essa transmissão é destituída de método, de processo pedagógico, de conhecimento sobre corpos”, explica Erminia Silva.
Nessa época aconteceu um burburinho nas famílias circenses. A maioria, levada pela certeza de que era preciso seguir padrões de ensino para se manter incluído socialmente, acreditou que ter um diploma é que qualificaria, que daria valor à profissão.
“Fez sentido para várias pessoas. Na década de 1940/50, a minha tia caçula foi a primeira da nossa família a parar de itinerar e que vai parar numa escola chama Ave aria, um internato de meninas. Ela ficou interna nessa escola e só ia para o circo nas férias. Na minha geração, de sobrinhos…. isto até que era comum. Mas a questão de uma geração inteira parar para estudar numa escola formal foi um marco, nunca tinha acontecido na história do circo, desse modo de produção de espetáculo que mistura uma diversidade artística. Circo, teatro, dança, música, sempre estiveram juntos na sua origem”.
Foi em 1922 que surgiu a primeira escola de circo fora da lona, na antiga União Soviética. Aqui no Brasil já vivíamos o burburinho, com mudanças trazidas pela Semana de Arte Moderna. Artistas circenses passaram a fazer parte da vida política do país. Eles pararam de itinerar, sim, mas não pararam de ser artistas. Estavam ligados à produção da discografia brasileira, na origem do rádio, da televisão, do cinema.
A diversidade da qualidade de atividades circenses estava presente no urbano fixo. Começaram as mudanças na área do trabalho, e a década de 50 vai transformando também o modo de coletivo de produção num processo de socialização, um imbricado no outro. O circo passou a ser produzido como um espetáculo e passou-se a ter uma escola sob a arena. A história da Escola Nacional de Circo começa nesse burburinho societário.
“Aqueles circenses que saíram do circo começaram a pensar, junto com o sindicato da época – estou falando dos anos 1976, 1977, sim levou bastante tempo para consolidarem essa ideia. Começou-se, então, a consolidar a produção de uma escola, mas era escola pensada para abrigar somente os filhos de gente de circo. Isso nunca aconteceu”, conta Ermínia Silva.
Ermínia é professora da história do circo, nasceu na barraca, mas nunca foi artista. Assim como ela, há vários professores oriundos da itinerância, que pararam e foram montar essa história. A história do Circo, origem de um caldeirão de cultura, agora sendo ensinada numa escola.
“A Enclo foi uma iniciativa pública. A escola de São Paulo acabara e inaugurou-se a escola do Rio, quando ainda não existia a Funarte. E a escola passa por vários processos. A procura é enorme, e com as mais variadas perspectivas: atores e atrizes, dançarinos, gente da classe média que não se sentia ligado a nada, relação dessa escola com comunidades faveladas, pobres. Uma diversidade. Uma produção incrível. A quantidade de meninos, meninas, adultos, homens, mulheres, vários grupos que se formaram lá e que estão aqui até hoje. Como era uma ideia muito nova, passou por inúmeros formatos. Os professores já não estavam ensinando seus filhos, sobrinhos e netos, e tiveram que se adaptar”, conta Ermínia.
Desce o pano.
Estamos em 2021, vitimados por uma pandemia. Em junho do ano passado, o diretor Carlos Eugênio Vianna, que estava há seis anos à frente da Enclo, foi subitamente exonerado do cargo, o que contrariou entidades e pessoas ligadas à escola. Em seu lugar, entrou a produtora cultural Luciana Lago, alinhada ao governo Jair Bolsonaro, demitida nesta semana. Em dezembro do mesmo ano, a lona da escola foi retirada do local sob a alegação de que uma obra seria realizada no espaço. Alunos que recebem bolsa dão conta de que o valor não vem sendo depositado desde fevereiro.
Legitimamente, alunos e professores estão aflitos. Mesmo com a resposta da Funarte que, em nota ao jornal “Extra” no dia 3 de março, negou que a Escola Nacional de Circo será a sede administrativa da instituição, e que maior parte da administração da entidade, hoje no Edifício Teleporto, no Centro, vai ocupar salas do prédio do Teatro Glauce Rocha, na Av. Rio Branco. A fundação também disse que está em tratativas com circos da cidade para a realização de algumas das aulas práticas neste primeiro semestre, mas que isso ocorrerá apenas até que a nova lona da escola seja instalada e quando as atividades retornarem integralmente à sede.
O futuro pode ser infinito. No presente, a ação. Sendo assim, um grupo de artistas, educadores e pesquisadores se uniram de forma espontânea e produziram uma carta-manifesto, lançando o movimento em defesa da Escola, com as hashtags #ENCLOFica e #ENCviva nas redes sociais.
Perto de 17mil pessoas já assinaram. A campanha viralizou nas redes por meio de vídeo-selfies postados de forma espontânea por circenses, artistas, lideranças e amantes do circo que entendem a importância de defender esse patrimônio cultural brasileiro.
Os signatários da Campanha #ENCLOFica (cujo teor pode ser acessado aqui: https://bit.ly/ENCLO-Fica) endereçam ao presidente da Funarte, Lamartine Holanda, os seguintes pedidos:
- Manter a Enclo nas instalações da Praça da Bandeira;
- Preservar a integridade das instalações da Enclo na sua função original;
- Apresentar plano e protocolo de cuidado em saúde no contexto da pandemia global do novo coronavírus, que garanta a continuidade das atividades de formação;
- Garantir o caráter público, gratuito e de qualidade da Enclo evitando qualquer contrato com setor privado para o desenvolvimento das suas atividades;
- Garantir a continuidade dos programas de fomento à formação e à pesquisa artística por meio do programa de bolsas;
- Convocar uma comissão de profissionais de reconhecido gabarito para elaboração de um diagnóstico participativo para uma reformulação político-pedagógica do currículo da Enclo.