A tarde seguia como têm seguido as tardes neste mês de março. Abafada, seca, com uma névoa envolvendo o céu que já não tem aquele azul de janeiro e fevereiro. É março sendo março: quente, enevoado, sem chuva.
Tenho lidado com uma tosse resistente e seca que vem me perturbando as manhãs. Restou-me sair de casa com meu cachorro para tentar capturar algum ar fresco que consiga furar o bloqueio da tal corrente que está segurando as frentes frias. Pensei em tomar um sorvete de chocolate na padaria, atitude corajosa e prosaica. Há tempos não oferecia este estupendo jorro de prazer ao meu corpo.
Mal pus os pés na rua e ouvi um vizinho me chamar. Vizinhos: a melhor rede social que existe. E não precisa de dispositivos exotéricos e viciantes.
Aqui, vale um parêntese: lembram-se quando, durante a pandemia, nós nos questionávamos sobre o que seria o novo normal depois de o bicho resolver ir embora pelo caminho que tomou ao vir para nos perturbar? Pois então. O trabalho em casa é um novo normal, sim. As empresas decidiram que assim seria: uns dias em casa, outros dias no escritório. E apelidaram de ‘sistema híbrido’, que na natureza explica o cruzamento de bichos de raças diferentes, um sistema naturalmente anômalo.
Fecha o parêntese. Expliquei isto para dizer a vocês que tanto eu quanto o meu vizinho somos pessoas de muitos afazeres, sim senhores. De manhã cedinho, às vezes já estou aqui batucando nessas teclas que uso para conversar com o mundo. Assim como, tarde em algumas noites, é possível ouvir o baticum de meu computador. Também com o vizinho que me chamou, isto acontece.
Estamos num novo normal, fizemos da casa nosso escritório, nossa redação. Por isto que, vez por outra, a gente tem tempo, aquele tempo que havia se perdido, de bater um papo, jogar conversa dentro de um mundo tão pra fora.
Ricardo, meu vizinho, estava sentado num banco já meio surradinho e quebrado, que fica num pedaço de piso que não é asfalto. Portanto, pode se chamar de calçada. Se tivesse um olhar cuidadoso da administração pública, seria um canto mais afável.
Mas, do jeito que está, serviu para nos sentarmos e papearmos. O meio da tarde de um dia do meio da semana, num meio de mês quente, abafado e seco.
E nós ali. É claro que só podia dar em muxoxo e reclamação de minha parte…
“Ai que estou ainda gripada! Ai que este calor não vai embora! Ai que a chuva não emplaca nesta cidade”.
Daí para…”ai que estamos em guerra! Ai que a política nacional vai de mal a pior… e os juros, meu Deus? Que não baixam! Como o Lula vai conseguir consertar este país?”
Há momentos em que ser resmungona é tudo o que se quer. E que coisa boa achar um ombro amigo no meio da rua tranquila para ouvir nossos resmungos.
Mas tudo tem limite. E Ricardo, virando-se para mim, decidiu mudar o rumo da prosa.
“Ainda bem que temos a arte, a cultura. Tô lendo um livro lindo, “Imaginação – Reinventando a cultura”, da Marta Porto, editado pela Pólen. Conhece a Marta? Foi minha professora!”
Bendito seja a arte, a cultura, o ombro amigo, o livro maravilhoso que – vejam só! Eu também tenho! E autografado pela minha querida amiga Marta Porto. Estava aqui na minha estante, mas agora está comigo, na cabeceira. É um oásis no meio disso tudo que estamos vivendo. Expulsou de mim o marasmo resmungatório, devolveu-me até um pouco de saúde. Compartilho com vocês. Mas adianto: vale ter na estante.
Marta Porto é uma crítica de cultura e foi minha fonte quando eu editava, no jornal O Globo, o caderno Razão Social. Lembro muito bem de uma entrevista que ela me deu, à qual dei o seguinte título: “Não existe meio ambiente sem gente”. Era uma forma de Marta fazer uma crítica aos movimentos ambientais de empresas que se esqueciam do necessário cuidado com as pessoas.
No livro de linda capa rosada desenhada pelo filho Artur Porto, e editado em 2019, Marta reuniu 14 ensaios sobre arte e imaginação.
Reparem que foi escrito antes da pandemia. E a pergunta que abre o primeiro ato é: “O que sobra da imaginação após a catástrofe?”
Marta já se contorcia de reflexões sobre o caminho que o mundo andava tomando, “entre o sismo e o soterramento”. E construiu o texto que nos encantou a modorrenta tarde pós-pandêmica, ali no banquinho meio caído, no que ela chamou de “fragmento de tempo desse hiato”, É neste hiato, nesta suspensão, “que se revelam quais significados ainda valem a pena ser vividos, reinventados, rompidos, transpostos”.
“A poesia e a literatura salvam”, profetizou Marta Porto, longe, muito longe, ela e eu, de imaginar, naquele longínquo 2019, que um dia seu livro iria salvar-nos, a mim e ao vizinho, de um afogamento de certezas distópicas. Escreve Marta Porto:
“Cápsulas de imaginação deveriam ser incentivadas em todas as ações de arte, nas ciências, nas escolas, nos templos, onde houver qualquer dimensão que trate da subjetividade humana. Esta seria a avalanche das utopias, capaz de criar uma onda de novas ideias que, de forma livre e desmedida, invente um novo ciclo de desenvolvimento, não mais só tecnológico, mas de pensamentos e criações livres, em que natureza, harmonia, verdade e justiça estejam no centro das pesquisas e dos avanços de uma nova forma de fazer ciência. Aquela que salva os homens deles mesmos”.
Esta ideia – salvar o homem de si mesmo – não é mesmo deliciosa?
Temos mar, areia, pedra, vento quando dá, chuva quando dá, árvores quando aqui as plantam, terra… e o homem, só de pirraça, quer mesmo lançar uma bomba nisso tudo? É sério?
Mas sempre nos restará a arte, a música, o humor, a pintura, a escrita. Marta Porto vem nos lembrar este motivo. Viver é bom. Vamos aproveitar e espalhar bom humor por aí.
Quem sabe esta energia bate lá nos que se chamam de líderes de nações? Quem sabe a gente consegue espalhar por aí o prazer dos bons encontros?
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.