Do topo do cadeia alimentar, o ser humano é quem define o destino dos animais: o que é para comer e o que é para cuidar. Os ditos “pets”, eleitos para serem cuidados, em geral são bem alimentados, até mesmo com um bife suculento. Enquanto isso, outros muitos seres humanos vivem nas ruas alimentando-se de restos. Esse é mais um dos retratos do século XXI.
Vamos imaginar, num exercício de ficção, qual será a imagem que a nossa era deixará para o futuro? Eu digo futuro mesmo, daqui a uns cem anos. E, é claro, contando com a possibilidade de a humanidade permanecer como espécie no planeta. Algumas imagens me veem à mente, mas pensando sobre o paradoxo que nos rodeia, um retrato se destaca. Nele, um homem acaricia docemente seu cão com uma das mãos enquanto, com a outra, segura um garfo que o ajuda a levar à boca um naco sangrento de carne de boi.
Sem julgamento. O convite aqui é para a reflexão.
Alguns sites dão conta de que a pandemia fez crescer ainda mais o afeto dos brasileiros aos bichos de estimação. Quem já tinha, passou a dar mais atenção, a pesquisar mais sobre seu comportamento, a tentar melhorar sua qualidade de vida. Atualmente, o Brasil tem a segunda maior população de cães, gatos e aves canoras e ornamentais em todo o mundo, e é o terceiro maior país em população total de animais de estimação. São 54,2 milhões de cães, 23,9 milhões de gatos, 19,1 milhões de peixes, 39,8 milhões de aves e mais 2,3 milhões de outros animais. O total é de 139,3 milhões de pets (dados do site da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação – Abinpet).
É possível que o primeiro lugar em número de pets fique com os Estados Unidos, que tem mais de 83 milhões só de cães. Em toda a Europa estima-se que haja 75 milhões de cães.
E adivinhem quem farejou esse crescimento como uma oportunidade e tanto para seguir à risca um dos mandamentos do capitalismo, acumular? O mercado, claro. O mercado pet já representa hoje 0,36% do PIB brasileiro, à frente dos setores de utilidades domésticas e automação industrial. Em 2018, a indústria de produtos para animais de estimação faturou R$ 20,3 bilhões. Em 2006, esse número era de R$ 3,3 bi. Num recentíssimo pronunciamento, o presidente Bolsonaro garantiu que, em 2020, o faturamento do setor passou para R$ 40 bilhões.
Há exageros, consumismo. E nem sempre é divertido, para o cão, ser vestido como gente, usar sapatos (eles PRECISAM pisar no chão, na grama, na terra) e medicado em excesso. Roupinhas para ocasiões especiais, brinquedos de último tipo, tapetes, travesseiros, colchas, quitutes dos mais variados… e o dono do pet pode acabar deixando na loja uma soma em dinheiro que, no fim das contas, pode pesar no orçamento. Resultado direto disso: a relação com o bicho começa a ficar desgastada.
Há, por exemplo, a eficaz medida de tentar evitar o tédio deles, já que muita gente que adota um cão precisa trabalhar o dia todo, deixando-o sozinho em casa por longas horas. O problema é que a gente acaba humanizando nossos animais.
“Tratar seu cachorro como um bebê não é bom para ele, nem para você”, dizem os especialistas. E, vamos combinar, com razão.
Mas, no geral, os cuidados exagerados são melhores, para o bicho, do que ser abandonado à noite numa rua escura e deserta por donos covardes que se justificam dizendo que não podem mais cuidar dele.
Mesmo evitando os exageros, porém, o que ocorre é que os preços de remédios veterinários, por exemplo, sobem muito e, aparentemente, sem regulação. De um mês para o outro, o medicamento que precisa fazer parte da rotina de um cão idoso, pode subir sem que você tenha sido avisado. A surpresa aparece na hora de pagar a conta. O mesmo com os preços das consultas, exames e tais.
Numa entrevista bem interessante que deu ao jornalista Breno Altman, do site OperaMundi (assista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=amE253akFd0) , a também jornalista Silvana Andrade, presidenta da Associação de Noticias sobre o Direito dos Animais (Anda) (https://anda.jor.br) lembra que dar atendimento adequado aos animais que se tutora é uma questão de cidadania, portanto os governos deveriam ser instigados a ajuda, fornecendo, por exemplo, saúde pública para os bichos:
“Muitas pessoas me dizem: ‘Silvana, vc é louca! Não há saúde nem para as pessoas, quanto mais para bichos’. Mas é preciso exigir. Uma pessoa em situação de rua deve ter o direito de cuidar de seus animais, por exemplo”, disse ela, lembrando que em São Paulo já há quatro hospitais desse tipo e que a luta é para que se abram farmácias populares.
Já que começamos o texto com lembranças sobre nossa era dos paradoxos, não custa lembrar que cobrar coerência nessa hora – “não tem nem para pessoas, quanto mais para animais” – é mais uma contradição. Sabemos a importância dos bichos, valoramos sua companhia, mas na hora de oferecer-lhes lugar em nossa civilização, eles acabam ocupando um degrau abaixo. Sem medo de estar sendo exagerada, digo que esta atitude corrobora a onipotência do homem, que sempre considerou a natureza como algo a ser dominado.
Sempre? Não, nem sempre com relação aos bichos. No pequeno vilarejo chamado Saint-Julien, no século XVII, seus habitantes abriram um processo contra uma colônia de gorgulhos – espécie de besouros – que teria invadido vinhedos causando estragos consideráveis na colheita. O pedido, feito ao vigário-geral, era para que ele prescrevesse medidas convenientes para “aplacar a cólera divina e a proceder dentro das regras, por intermédio da excomunhão ou qualquer outra censura apropriada”, à expulsão definitiva dos insetos. Foi, como lembrou Luc Ferry, provavelmente a primeira ocorrência de um “contrato natural, de um pacto com seres da natureza”.
(P.S.) – Enquanto escrevia este texto li a notícia de que o ator Alan Cumming pediu que os organizadores da próxima cúpula do meio ambiente, COP-26, que vai acontecer em novembro na Escócia, não sirvam carne de animais aos participantes. Para ele, seria o mesmo que servir cerveja numa reunião de Alcoólicos Anônimos. Ponto para Cumming. Assim podemos ir aparando as arestas do nosso retrato de paradoxos.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.