Depois de quase meia hora absorta em imagens impactantes produzidas pela equipe de filmagem de três vídeos, entre eles o curta “O Chamado do Cacique”, a plateia acompanhou o caminho daquele homem de 92 anos, eterno guardião da floresta reconhecido mundialmente, o cacique Raoni, subir os poucos degraus até chegar ao palco. Estávamos no Museu do Amanhã para celebrar a Semana do Meio Ambiente, e Raoni foi convidado, assim como o cientista Paulo Moutinho, o cineasta Bruno Ramos e Beptuk Metuktire, neto e tradutor do indígena. Há tempos Raoni não fala mais a língua dos homens brancos. (A foto foi feita por mim durante o evento).
Cumprindo o ritual costumeiro de tais eventos, o apresentador e curador do Museu Fabio Scarano pegou o microfone e chamou os convidados. Certamente passaria a palavra ao cacique, mas não foi preciso. Raoni pegou o microfone e sua voz limpida e segura se fez ouvir. Era quase uma oração, que a plateia acompanhou num silêncio respeitoso. Falou alguns minutos e deu tempo para que o neto traduzisse. Primeiro, perguntou se todos tinham gostado dos vídeos, recebendo um sonoro sim como resposta.
“A cultura existindo, a floresta estará de pé. Por isso, mais uma vez quero pedir que me apoiem para eu continuar unindo todos os povos, até vocês, como não indígenas, para que possamos continuar vivendo neste mundo. Posso reunir outras lideranças para fortalecer mais ainda a luta em defesa das florestas e dos povos indígenas. Outro ponto: nosso criador nos fez pensar o bem, para o próximo, para que possamos viver com saúde. O criador acompanha a todos nós, ele está de olho…. Quando você pensa em conflito, você vai preocupá-lo. Por isso peço que reflitam nesse caminho do bem para todos nós… Vamos nos preocupar com o futuro, não com o passado. Vamos pensar nas florestas, nos rios. A floresta nos dá alimento, por isso a gente tem que cuidar dela”, disse o cacique Raoni.
É este o chamado que o sábio cacique faz para a nossa civilização. E eu fiquei feliz por estar ali, a ouvi-lo, e por ter escrito, seis anos atrás, na coluna que eu assinava no portal G1, o resultado de um relatório divulgado pela ONU, dando conta de que “as florestas prosperam quando os povos indígenas permanecem em suas terras e têm direitos legalmente reconhecidos para gerenciá-las e protegê-las”.
Não faltam, não faltarão homenagens e dias para celebrarmos a natureza, mesmo que muitas vezes a festa seja distante das nossas práticas, se é que vocês me entendem. Mas é importante, mesmo assim. Semeia, a Semana do Meio Ambiente no Museu do Amanhã, terá programação cultural extensa e gratuita sob o tema “Trilhas da Florestania”, e vale muito a pena estar presente (o site do Museu tem toda a programação).
Nada há que reparar na simples e grave mensagem que o cacique Raoni fez espalhar ao mundo, ali daquele microcosmo no Centro do Rio. Sabemos todos, mesmo aqueles que fingem não saber, que as florestas e a biodiversidade são nossos sustentáculos no planeta. Paulo Moutinho, co fundador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, que também estava presente à comemoração do Dia, pontuou a simplicidade da fala de Raoni:
“É um discurso simples, de uma simplicidade que a nós já nos esquecemos. Sem rebuscamento, o cacique fala de reunião quando tudo que ele viu foi morte, sangue, usurpação de direitos. E ele diz: ‘vamos esquecer o passado’. Não é só uma questão de preservação de direitos básicos, neste momento estamos falando é do funcionamento do planeta”, disse ele.
Os dados sempre impressionam, e é por isso que os institutos realizam estudos e os divulgam há décadas. É uma forma de manter um alerta, sobretudo para aqueles do agronegócio Business As Usual, que não se cansam de dizer que “é muita terra para pouco índio”. Por conta da atuação dos povos indígenas, dos quilombolas e dos ribeirinhos, dez anos de emissões de gases poluentes estão preservados, informou-nos Paulo Moutinho.
“Essa parte do agronegócio parece não saber que o negócio deles depende disso, da preservação. O Xingu é uma bomba de água que abastece toda a produção de soja. 40% da chuva, da umidade da área, é mantida pelos povos indígenas. Se nós perdemos isso, a produção da soja despenca”, afirmou Moutinho.
As secas, assim como as enchentes, estão cada vez mais severas. Vimos o que aconteceu no Rio Grande do Sul, aliás, o que continua acontecendo desde o dia 27 de abril. No estado do Amazonas, a previsão é de seca severa, os níveis dos rios estão abaixo do esperado e a Defesa Civil já deu alerta para a população guardar água, comida e remédios.
No Dia Mundial do Meio Ambiente, em Brasília, o governo federal anunciou, junto à Ministra Marina Silva, oito decretos, algumas assinaturas de protocolos de intenções. Foi um pacote de medidas que visam a qualidade de vida e ao bem estar dos cidadãos e das cidadãs. Considerando que vivemos tempos bem difíceis no governo passado, este é um momento de celebração.
Ainda há tempo?
Alguns autores referem-se a Alexander von Humboldt, que viveu de 1769 a 1859, como o primeiro a chamar nossa atenção para mudanças climáticas causadas pela ação humana*. Humboldt era um naturalista alemão que tinha dinheiro e empregou-o bem, numa expedição em territórios que hoje compõem Venezuela, Peru, Colômbia, Cuba, México e EUA.
O alemão se preocupou como os sistemas de irrigação poderiam causar salinização, como o desmatamento poderia alterar o clima e o curso de rios e como as ações humanas poderiam ser a causa de deslocamentos de sedimentos catastróficos. Já em sua viagem ele percebeu que já era notável a interferência do homem na natureza.
Seu desassosego é visível para o leitor de “Visões da natureza”, onde Alexander Humboldt conta sua expedição à América.
Já passamos da fase do desassossego. Por tanto submetermos a natureza aos nossos desejos para construir uma vida mais confortável e próspera, conseguimos também que a ciência evoluísse a ponto de nos alertar. Relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental das Mudanças do Clima) feitos por cientistas voluntários, vêm se esmerando em tais alertas. E em sugestões para fugirmos do caos total.
Mas ainda estamos vivos. Alguns, como nós que estivemos no auditório do Museu do Amanhã na tarde de ontem (6), com privilégio de ter respeito e dar voz a um sábio. Outros, porém, estão longe disso, buscando construir mais máquinas para tirá-los deste planeta.
Fico feliz em pertencer ao grupo dos que escutam os sábios.
*Esta informação está no excelente livro “Concepções de Natureza – Em Humboldt, Darwin e Lévi-Strauss”, da Ed. UFRJ, organizado por Christine Ruta e Mariana Contins.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.