Boaventura de Sousa Campos é um sociólogo português que nasceu em Coimbra há 80 anos. É um escritor incansável, um palestrante carismático. Seus temas preferidos são os movimentos sociais, a globalização, a democracia participativa, a reforma do Estado e os direitos humanos. E seus livros, publicações imperdíveis, são traduzidos em diversas línguas.
Durante a pandemia, vivendo uma rotina confinada, inusitada para quem, como ele, é acostumado a viajar mundo afora, o professor Boaventura escreveu “O futuro começa agora – da pandemia à utopia”, lançado aqui pela Editora Boitempo. Recomendo muito a leitura. É uma obra que ficará para a história. Poderá colaborar muito para nossos futuros escafandristas resgatarem, com riqueza de detalhes, o que sucedeu neste início de segundo decênio do século XXI.
Compartilho com vocês, a partir da obra de Boaventura, uma reflexão que pode nos ajudar a entender um pouco mais a respeito desse diminuto, invisível e poderoso inimigo que nos assola. O sociólogo usa metáforas para qualificar o Corona vírus. Numa delas ele o chama de vírus inimigo, e chama atenção para o fato de que esta metáfora cai como uma luva aos governos. Um dos vieses que pode ser usado pelos estados, ao diagnosticarem o vírus como inimigo, é o que fomenta uma “narrativa política simplista, do tipo ‘ou está conosco ou contra nós’”.
O vírus também é mensageiro, traz em si uma mensagem da natureza, do modo como a humanidade está lidando com o território que a acolhe. Muitos cientistas já alertaram para o fato de que as mudanças climáticas podem desencadear patógenos porque a terra vai sendo revolvida, ressecada ou alagada pela ação do homem. Os habitats dos animais estão recorrentemente sendo revirados, muitos exterminados. Tais mudanças bruscas podem também gerar deslocamentos dos organismos que são capazes de causar doenças nos humanos.
A outra metáfora usada é a do vírus como pedagogo. É a preferida de Boaventura, porque é a única que nos faz tentar “compreender o vírus, as razões de sua ação e, em função disso, tentar organizar as respostas sociais que, no futuro, poderão diminuir a possibilidade de sermos visitados por novos vírus”. Se fosse possível, sobretudo, que nos forçássemos a mudar uma cultura ocidentalizada que nos põe apenas como “ouvintes”. Não, o Corona Vírus exige mais do que isso, ele exige uma escuta profunda, delicada, atenta.
“Como fazer a escuta profunda do vírus? É preciso, antes de mais nada, considerar que o vírus pode estar querendo dizer coisas que são ininteligíveis apenas porque não as podemos ou queremos entender… Por mais insondável que seja o vírus, a sua presença entre nós é assustadoramente inequívoca. Estamos, pois, em co-presença, e é a partir daí que deve ocorrer a comunicação”.
Como conseguiremos traduzir a mensagem do vírus a nosso favor? Na medida em que “tivermos em mente que o ser humano que é hoje infectado pelo vírus é o mesmo que, durante séculos, infectou e atentou contra a natureza”, alerta Boaventura. Não é fácil escutar isso. Sobretudo, não é fácil imprimir a série de mudanças necessárias em nossas rotinas para tentar uma outra via para a nossa escalada civilizatória.
Podemos, sim, começar agora uma era triste, de pandemias intermitentes, cujo enredo pode ser assustador para muitos. Mas também podemos fazer diferente, e é este o convite que o sociólogo nos faz, na parte final do livro. Ali ele oferece ideias e sugestões de passos para uma transição, na qual impõem-se decisões globais e “a criação ou o reforço de instituições globais para as levar a cabo”.
Boaventura fala em pluriverso, em diversidade de contextos e das culturas do mundo. E, é claro, no respeito que se deve ter por cada uma delas. Este é um consenso no “exercício de sociologia das emergências” proposto pelo mestre. Boa leitura.