Aconteceu no século passado, tão logo soaram os últimos acordes dostristes tempos em que o país esteve sob uma ditadura militar, quandoa mordaça começou a ser afrouxada e as pessoas sentiram novamente o tom, o sabor da liberdade de viver. Foi então que os movimentos sociais, que se formavam em guetos, às escuras, porque era proibido se mostrar e ser, lançaram-se às claras, sob o sol, sentindo na pele o vento e respeitando as cores, as diferenças, costurando e bordando novamente o tecido social para recriar o sentido de ser livre. Não à toa, o período em que mais houve criação de ONGs foi nessa época, fim dos anos 1980, início dos anos 1990.
Felizmente é desse tempo feliz que vamos falar. Porque naquele caldeirão de cultura, arte, debates sobre políticas públicas, educação,saúde… foi ali que surgiu também o Circo Social, nosso tema de hoje, ainda não muito conhecido. “O Circo Social sonha com um mundo diferente, integrado e solidário, que se aceite como ele é: o lugar de todos – redondo, itinerante e a céu aberto”, diz o texto de apresentação do site da Rede Circo do Mundo Brasil.
A ideia aqui é descobrir, com a ajuda do arte educador, músico e pesquisador chileno Claudio Barría Mancilla, membro do coletivo Pluriverso, um pouco da história deste fenômeno social de tanta importância para a cultura do país. Centenas de organizações, nas cinco regiões do Brasil, trabalham com o conceito de Circo Social, servindo como trampolim para a cidadania de milhares de crianças e jovens.
“A potência simbólica do circo como espaço de libertação é enorme, mas não como ferramenta para a assistência, é enorme para a educação das pessoas. Trata-se de um conceito epistêmico, de educação pela arte. Não é ensinar a fazer circo. É como, através da arte, as pessoas conseguem ensinar a sermos melhores humanos e sermos parte de tudo que somos parte”, disse Barría na palestra para o Curso CirFormando, de Educadores de Circo Social da Escola Pernambucana de Circo (EPC).
Barría prefere não situar uma data para o surgimento do Circo Social. É certo, porém que foi ali, exatamente no caldeirão de liberdade do período pós-ditadura, que surgiu o espaço “onde o ético e o estético não se dissociam”, onde “histórias se consolidam como uma ação coletiva que se estrutura”.
“E podemos dizer que nasceu uma coisa nova. É essa concepção que nos interessa”, disse ele.
Lembrando o vasto e complexo conceito de campo, criado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu ( 1930-2002) – que define conceitos,categorias, protocolo de ações, um tecido social que nos une e que produz suas verdades simbólicas – Barría se propõe a fugir da “ideia pesada de achar o pai da criança, a data de nascimento, o dono”. Circo Social está em movimento. É uma forma de se misturar o circo com a ética, com o compromisso de transformação social.
Outro autor citado por Barría é Paulo Freire, mestre da educação popular, aquele que fez questão de dizer: “Professor que não aprende, não ensina”. Pois é essa também, a educação popular, uma das fontes mais ricas que ajudam a entender o surgimento do Circo Social.
“Eu entendo o Circo Social como uma espécie de software livre, que tem uma base, uma estrutura, mas cada um pega e lança sua própria distribuição. Para uns, o afluente “assistência social” foi mais forte, e essas pessoas vêm a parte circense como técnica. Para outros, a educação popular foi o fator mais potente, e esses formam os circos sociais mais críticos, pensativos. Tem ainda aqueles para quem fica difícil diferenciar o Circo Social de uma escola de circo. Sempre tem alguém que diz que Circo Social é para pobres, o que é uma ignorância. O circo sempre foi lugar do outro, do negado, do não aceito socialmente. E essa é uma das potências pedagógicas que deu origem ao Circo Social”, disse Barría.
Fato é que cada organização trabalha com sua própria trajetória. O Circo Social é potente, por isso é um instrumento para trabalhar com crianças em situação de rua, crianças que moram em favelas, mas não é uma metodologia assistencial. O que ele faz é cumprir um papel deixado vazio pelas metodologias da educação tradicional.
“O Circo Social não é uma metodologia, é uma concepção epistêmica de processos de ensino-aprendizagem para a construção de cidadania, e cabe aos atores envolvidos definir o que é cidadania. Nãohá valores estanques, há valores em construção”, completa Barría emsua reflexão de percepção da análise do processo histórico de construção do Circo Social.
Assista a palestra no vídeo
Fotos: Arquivo Se Essa Rua Fosse Minha e Walter Mesquita.