Cartas ao vento III
Muro4

Seguimos para a terceira correspondência da série “Cartas ao Vento” que acontece durante a quarentena como uma forma calorosa de despertar nossa sensibilidade. Por Tátia Rangel

escrevo daqui, desse lugar inanimado que se tornou um
dia. desse corpo, que sem forças, deixou escapar a luz do sol
pelos dedos. deste instante que não volta mais. escrevo. como
tentativa de não perder a lucidez. como invenção para ter alguma
lucidez. escrevo. entre uma lágrima e um sorriso. escrevo. como
expiração para continuar inspirando. escrevo. assim, continuo
vivendo. abarrotada de ideias, atravessada pelas emoções. tornei-
me um amontoado de coisas. (livros, filmes, lives, chamada de
vídeo, de voz). uma pausa. preciso, precisamos inventar soluções.
pequenas. que caibam no nosso querer, e no nosso poder. para esse
instante. uma solução. que nos acalente, faça um chamego, nos
provoque sorriso, nos dê sentido para continuar até o instante
seguinte. uma solução. sem medo, com calma. uma solução. sem medo,
com calma. há dias de andar só para frente, sem olhar para trás.
outros pegar tudo com a mão esquerda. noutro só usar a mão
direita. houve um dia de só ler páginas pares, outro, só páginas
ímpares. teve uma manhã que prestei atenção aos cheiros. aonde vai
o cheiro depois que ele passa? noutro observei sombras, as minhas
e as da parede. um dia qualquer, me escondi de tudo, cavei um
buraco, e nele fiquei. me senti sozinha, busquei alguns livros. a
solidão passou. estava anoitecendo, um pensamento persistiu: como
será não terminar um dia? é. como o deixar existindo até amanhã?
já estava me esquecendo. uma pausa. preciso, precisamos inventar
soluções. pequenas. que caibam no nosso querer, e no nosso poder.
para esse instante. uma solução. sem medo, com calma. uma solução.


Tátia Rangel
junho/2020.


Imagem: Yuri Firmeza. Ação 3”, 2015, impressão de tinta a jato sobre papel algodão, 67,5 x 90 cm cada
Fonte: Pipa Prize

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