Cartas ao vento

Com a delicadeza, a sensibilidade e o belo texto que são suas marcas, Tátia Rangel nos presenteia com mais uma reflexão, sob o formato de carta. Isolamento social, dualidades, arriscar-se ou não? Com vocês, para boas reflexões e deleite.

qualquer dia de outono. não importa a data, nem o ano. o que importa também não sei, mas sinto que a janela permanece no mesmo lugar. a paisagem que contempla – muda –  aos meus ouvidos.    sinto.    pelos que morreram sem amar, sem sorrir, sem viver, sem olhar por alguma janela.   sinto.   pelos que morrem mesmo vivendo.   sinto.   há uma dureza nas pedras, que quando as toco são suaves. já as nuvens tão leves ao olhar. quando nelas chego, deparo-me com a dureza do imaginar. o abismo da ilusão. penso no calor do sol, lembro do frio do inverno. percebo que estou nas dualidades, tento ir mais além. então, me volto à janela. deixo-me à espreita dos pensamentos. navego pelos sons da rua. algo me toca a pele, é o cheiro da vida.    sinto.    nesse sentir-outro procuro por onde estou. não há rastros. talvez algumas pistas que devo arriscar. há medo por todos os lados, como conseguir arriscar? se eu morrer sem arriscar? se a morte for a garantia? o que vou contar para as nuvens? como irei confiar na pedra? presa nas dúvidas, o tempo escapa. correndo por ruas que desconheço. tento chamá-lo, mas minha voz sufoca diante da realidade.

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