O amor tem sido descrito como o maior e mais doce sentimento vivido no corpo, ou como o mistério que confere à vida o mais doce significado. Mas, quando é rejeitado ou perdido, também é reconhecido como uma fonte de nossa dor mais intensa. O amor é uma ligação vital, como uma fonte de vida e alegria e tem uma profunda conexão com o tônus de base. Ele alicerça o balanço tônico, que produz a hipotonia de satisfação nos estágios mais primevos do desenvolvimento psicomotor. A ruptura dessa ligação é, portanto, vivenciada como uma ameaça à vida, posto que o amor está na base da integração entre esquema e imagem corporal.
A perda do amor resulta numa contração do tônus de base, vivido no estado de onipotência, e no desamparo primário, o que gera um sofrimento profundo. Sobretudo porque é uma dor da existência que marca um medo de ir em busca do amor novamente. O desejo do amor permanece, mas é preciso vencer o medo da entrega em busca de um estado de profundo relaxamento.
Talvez o amor esteja na base da integração das vivências de prazer vividas no corpo em seus estados mais arcaicos, exatamente nas experiências de fusionalidade, seja uma experiência profundamente ancorada na relação corpo a corpo, uma experiência de coração. No mundo natural, a perda dessa ligação é fatal para um bebê se sua mãe substituta não puder ser encontrada. Quando o relacionamento é seguro, o bebê é assegurado, podendo se afirmar na vida em relação à dignidade e à mutualidade, que estão na base primária do desenvolvimento psicomotor. Quão importante é o registro corporal do amor no corpo, no qual a entrega uma qualidade de contato capaz de fazer o corpo vibrar de excitação prazerosa – o narcisismo primário. Nenhuma criança consegue conservar indefinidamente a ligação amorosa com sua mãe, pois seu destino irá obrigá-la a ser separada, a ir ao mundo lá fora e buscar o outro para vivenciar suas experiências afetivas e amorosas. No entanto, leva consigo suas marcas.
As crianças buscam vivenciar suas descargas afetivas, o que marca o caminho das vicissitudes pulsionais, o ‘quanta’ de energia investida no objeto amoroso, assim o amor ingressará simbolicamente como um ato de linguagem. A experiência amorosa vivida no chão da Psicomotricidade permite a construção das relações e vínculos seguros, o que permite uma estruturação ego-sintonizada, que entendo como um processo de autorregulação entre os mecanismos pulsionais e seus investimentos objetais. Se formos frustrados ou profundamente feridos em nossas infâncias, avançamos em direção às experiências ameaçadoras e às inseguranças, o que leva um movimento contraído para a vida com uma expressão corporal que luta por sobrevivência. A falta da expressão amorosa materno-infantil nos estados mais precoces do desenvolvimento Psicomotor pode levar à perda do amor, e, consequentemente, gerar uma profunda desconexão da integração entre esquema e imagem, inclusive levando a estados de cisão na base da organização da experiência do eu, o que interfere na capacidade de entrega ao amor, que jaz na organização das defesas primárias estruturadas na organização do ego.
Aquilo que se é vivido no chão da Psicomotricidade permite que as relações arcaicas fusionais sejam simbolicamente expressas nas psicodinâmicas afetivas do brincar e do estar juntos. Os sujeitos que foram feridos em suas primeiras relações amorosas com seus pais ergueram um conjunto de defesas contra serem feridos novamente, cujas ameaças eles percebem como risco de vida. Tendo vivido com elas desde a infância, elas tornam-se parte de seu modo de funcionamento primevo, incluindo os vitalismos afetivos e os modos de expressar os afetos no corpo simbolicamente. O chão da Psicomotricidade restitui a fé no amor, e o Psicomotricista precisa estar investido desse sentido de amar e brincar como um ato de asseguramento profundo, favorecendo a integração e a constituição do sujeito em sua natureza afetiva e amorosa, quiçá desejante.
Esta analogia é válida. O ego deveria servir ao coração, mas, na maioria das vezes, o amor está a serviço de si próprio para aumentar a sensação de segurança. O amor busca por segurança, assim como o prazer a alegria. Sem uma estruturação egoica madura, uma criança considera o outro como genitor, que pode satisfazer suas necessidades, ou seja, que pode proporcionar satisfação. Isso não significa que não haja amor, mas o amor tem uma qualidade pueril ou infantil e é preciso assegurar a condição de ser amado para viver o estado de autonomia.
O coração como um órgão do amor é simbólico, enquanto o ego tem suas raízes pulsionais e da sobrevivência no corpo. O amor promove delicadezas. As pessoas que não conseguem viver esta delicadeza amorosa são consideradas ‘corações duros’. Não se trata de ter o coração duro, mas ter uma musculatura endurecida, um corpo rígido. Essa rigidez impede o movimento espontâneo da alegria e do amor no corpo, e os desejos mais profundos, como encontrar o amor e alegria na relação.
O chão da Psicomotricidade pode restabelecer a capacidade de amar, favorecendo a relação da entrega, mesmo quando a força do impulso primário venha com a intensidade da agressividade e da destrutividade. O reconhecimento da alteridade amorosa nasce da relação, o concernimento da relação afetiva – que, segundo Winnicott, é ‘a passagem pelos estágios iniciais do desenvolvimento sem demasiados problemas’ – o ‘verbar’, o prazer o amor no corpo, a gramática corporal, os corpos falantes de José Angel. Nesse sentido, a verdadeira força egoica manifesta-se corporalmente na expressão afetiva do diálogo corporal, o que favorece um profundo estado de entrega, que se observa no júbilo do nenê até as expressões do olhar, do sorriso e da entrega tônica como uma experiência criativa e sensível na infância que habita os corpos.
“Sempre se pode dizer que uma pessoa está amando quando os olhos brilham”. O amor é uma entrega ao corpo, o ego entrega sua hegemonia ao coração, mas, nessa entrega, ele não é aniquilado, porque suas raízes no corpo são nutridas pela alegria que o corpo sente. Uma entrega do amor à vida, um amor que é capaz de se apoiar em suas próprias pernas, sozinha, se necessário. É possível expressar sentimentos livres, um amor não egoísta, o amor da partilha plena, autocentrado na expressão amorosa e mútua em toda a sua natureza e complexidade na expressão da satisfação e do deleite, quiçá da espontaneidade.
O amor que não busca a servidão, o categórico ‘tem que’, o assumir a responsabilidade pelo outro, mas que, aos poucos, vai permitindo que o sujeito amadureça sua relação amorosa. O amor é uma experiência de liberdade. O medo prejudica a capacidade de se entregar ao amor e não é um medo racional, mas um que decorre das experiências inconscientes. Sempre que se livra do medo, a existência se afirma com alegria, uma vontade de potência que se expressa pelo ardor da expressão psicomotora. A Psicomotricidade permite que as crianças de todas as idades entrem em contato com seus fantasmas, suas projeções, na medida em que a expressão simboliza as defesas corporais e afrouxam, restituindo os circuitos do prazer e do amor. A entrega ao amor implica a capacidade de partilhar, dar e receber e talvez seja uma das primeiras analogias do diálogo não verbal: a de estar aberto. Essa abertura, contudo, tem de ser primeiro encontrado na própria experiência de si, depois ao outro. A entrega ao corpo e aos vitalismos afetivos permite uma profunda entrega ao amor e à alegria, permitindo o fluir da expressão amorosa no corpo. O amor sempre traz a fé necessária para amar como um ato simbólico de expressão corporal à vida.
“A mãe olha para o bebê em seus braços, e o bebê olha para o rosto de sua mãe e se encontra lá … desde que a mãe esteja realmente olhando para o único, pequeno e impotente e não projetando suas próprias expectativas, medos e planos para a criança. Nesse caso, a criança não encontraria a si mesmo no rosto de sua mãe, mas sim as próprias projeções da mãe. Esta criança permaneceria sem um espelho, e pelo resto de sua vida seria buscando este espelho em vão.”
D.Winnicott
Marcelo Antunes é psicomotricista, sócio titular da Associação Brasileira de Psicomotricidade(ABP). É terapeuta corporal e coordenador da formação Aión de psicomotricidade educacional e clínica