Breve relato sobre ‘A queda do céu’ no dia internacional do indígena
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Hoje é o Dia Internacional do Indígena.

O que quer que queira significar esta efeméride, criada pela ONU em 1995, fato é que é sempre bom lembrar do povo que habitou originariamente a Terra Brasilis antes de os portugueses terem chegado aqui. Um povo que, seguindo a tendência atual de absoluta falta de conexão e respeito, hoje precisa lutar – esta é a expressão correta – para conquistar um direito básico: continuar vivendo nas florestas.

O paradoxo fica ainda mais nítido e revoltante quando se tem acesso aos dados que mostram que os povos indígenas são os que mais preservam as florestas. Não custa repetir: os povos indígenas são os que mais preservam os territórios dos quais vamos depender, cada vez mais e mais, para conseguirmos garantir um estado de bem viver aos humanos no planeta.

Um estudo feito pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura e pelo Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe, denominado Governança Florestal por Povos Indígenas e Tribais, mostrou que as taxas de desmatamento na América Latina e no Caribe são significativamente menores em territórios indígenas.

Sendo assim, era de se esperar que, num momento como o que estamos vivendo, quando as mudanças climáticas expõem os humanos cada vez a riscos maiores, os povos indígenas fossem chamados para ocupar assentos primordiais nas reuniões de líderes que buscam soluções para o problema. Em vez disso, eles continuam “na luta” para defender as florestas.

Mas efemérides são boas para se resgatar fatos e pessoas que fazem história. David Kopenawa, xamã e representante dos povos Yanomami no Brasil, gentilmente dividiu seus saberes com o antropólogo francês Bruce Albert e lhe pediu: “Se quiser pegar minhas palavras, não as destrua. São as palavras de Omama e dos xapiri. Desenhe-as primeiro em peles de imagens, depois olhe sempre para elas […] E, mais tarde, dirá a seus filhos; ‘Estas palavras escritas são as de um Ianomami , que há muito tempo me contou como ele virou espório e de que modo aprendeu a falar para defender sua floresta’”.

Tarefa dada, tarefa cumprida. Durante vinte anos, não menos, Albert conviveu com Kopenawa, sorvendo cada gota de sua sabedoria, de sua cultura. Em 2010 foi editado na França “La Chute de ciel: Paroles d´um chaman yanomami”, livro que chegou entre nós somente em 2021, editado pela Schwarcz, intitulado “A Queda do Céu”.

O livro tem 700 páginas. Na última parte, o xamã  dá algumas sugestões, deixa aos brancos uma espécie de guia sobre como não maltratar a floresta.

“A proteção da natureza, como dizem os brancos, são os habitantes da floresta, aqueles que, desde o primeiro tempo, vivem abrigados por suas árvores”.

Diferentemente do que se preconiza, os indígenas não se alimentam da floresta, alerta Kopenawa, mas de sua caça, seus peixes, dos frutos de suas árvores, do mel de suas abelhas, das plantas de suas roças.

“Não é desmatando e queimando a mata que se pode ficar de barriga cheia”, diz ele.

O xamã traça um histórico aflitivo, verdadeiro. Segundo ele, seus pais e avós não conseguiram dialogar com os brancos porque não falavam sua língua. Os brancos, por sua vez, sempre que chegavam perto dos indígenas “não falavam de ecologia”. Tudo o que os brancos queriam era as chamadas riquezas, e Kopenawa cita “peles de onça, queixada e veado”. Não eram tempos de preocupação com a ecologia.

“Os brancos não possuíam nenhuma dessas palavras para proteger a floresta. Elas surgiram nas cidades há pouco tempo. Finalmente, seus habitantes devem ter pensado: ‘Sujamos nossa terra e nossos rios, e nossa floresta está diminuindo! É preciso proteger o pouco que nos resta dando-lhe o nome de ecologia”.

E assim foi. Em 1972, pela primeira vez, as Nações Unidas se reuniram na capital sueca, Estocolmo, e o encontro teve foco no meio ambiente. Kopenawa não gosta dessa palavra meio. Faz sentido, se pensarmos bem.

De lá para cá, reuniões se sucedem. A ciência e a tecnologia são chamadas para ajudar a pensar caminhos e ferramentas para manter a floresta em pé, ao mesmo tempo que se tira dela o necessário para a sobrevivência. Repensar a produção e o consumo, no entanto, é tarefa árdua. Mais ou menos assim, como diz Kopenawa, repetindo as palavras de Omama, o criador da floresta na cultura indígena.

“Abram suas roças sem avançar longe demais. Com a madeira dos troncos já caídos façam lenha para as fogueiras que os aquecem e cozinham seus alimentos, Não maltratem as árvores só para comer seus frutos. Não estraguem a floresta à toa. Se for destruída,  nenhuma outra virá tomar seu lugar! Sua riqueza irá embora para sempre e vocês não poderão mais viver nela”.

É preciso compor. E negociar. E chamar os indígenas, que nos ajudem a fazer essas duas coisas. Para que o desenvolvimento necessário siga a cultura do povo que sabe respeitar a floresta, seus bichos, suas águas.

E que as próximas gerações tomem para si esta nobre tarefa. Vai ser necessário.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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