Bem Viver, o movimento que tem raízes indígenas, conquista outros povos
Da direita para a esquerda: Thiago, Tucumã e Potiguara

O Parque Lage, no Rio de Janeiro, é um espaço que muitos chamam de mágico. A natureza se impõe ali, e as pessoas acatam este valor mais alto. Caminham devagar, contemplam, falam menos e mais baixo. Uma reverência.

Nos dias 12, 12 e 14 de agosto, o lugar recebeu o Festival Iris Pro Bem Viver. Estruturado por uma organização sem fins lucrativos, idealizado por três mulheres, o evento foi palco para ótimos pensamentos. Falou-se de amor, mas não do sentimento hollywoodiano empastelado, mas do sentimento que imprime respeito. Não só às pessoas, mas à biodiversidade.

Falou-se também de saúde, e muito. Deu-se voz e respeito aos povos indígenas e toda a sua sabedoria milenar. Pessoas acostumadas a práticas da civilização de metrópoles fizeram contato com rituais indígenas e saíram com cheiros e cores diferentes em seus corpos.

O Festival Iris foi criado com a proposta de lançar um olhar ancestral para o futuro. Faz sentido este paradoxo. Estive lá no sábado (13), e gostei de ouvir a Eliane Potiguara, poeta, professora e embaixadora universal da Paz em Genebra, chamar a atenção dos presentes para o fato de que nada muda se cada um não proporcionar a si próprio uma experiência de mudança. Uma que seja.

“Estou na sétima década da minha vida e posso lhes garantir que a gente começa a transformação, primeiro, dentro de nós”.

Tucumã Pataxó foi o segundo indígena a falar. E definiu assim o Bem Viver, principal mote do encontro no Parque Lage:

“O Bem Viver é aprender a viver com nossos mais velhos. E a respeitá-los. Eles são livros vivos”, disse.

O socioambientalista e ativista ambiental Thiago Ávila foi o próximo palestrante. De pés descalços, calças enroladas até as canelas, sorriso eterno no rosto, o jovem Thiago, de 35 anos, apresenta-se como um socioambientalista e fala sobre desigualdade, sobre o sistema opressor, sobre trabalho explorado e degradação ambiental.

“A sociedade que explora e oprime é a mesma que causa destruição da natureza”, alerta ele.

Thiago é de Brasília, tem uma vida de luta contra a degradação ambiental e planeja construir o Poder Popular trilhando um caminho que ainda é recente para o Brasil, mas que já deu certo em alguns países, o mandato coletivo. Sumariamente, trata-se de uma forma de exercício de cargo eletivo legislativo, em que o representante se compromete a dividir o poder com um grupo de cidadãos.

Thiago conheceu o Bem Viver em 2016, na Bolívia, na posse do então presidente Evo Morales.

“É um caminho que nega a ideia de um desenvolvimento pintado de verde ou de rosa. É uma lógica contrária à forma de vida que explora a força de trabalho e a natureza, onde tudo é justificado pelo fundamento do desenvolvimento’, disse Thiago.

Já eu, fiz contato com o Bem Viver pela primeira vez através do livro de Alberto Acosta lançado no Brasil em 2016 pela Editora Elefante. Acosta é economista e foi Ministro no Equador e um dos responsáveis pelo plano de governo da Alianza País, partido encabeçado por Rafael Correa, que governou aquele país de 2007 a 2017. Acosta dirigiu os trabalhos da primeira Assembleia Constituinte do planeta que reconheceu direitos à Natureza. Ele tentou implantar no país o Bem Viver como instituição, mas não conseguiu. Distanciou-se de Correa, fazendo críticas dos desvios no processo que ajudara a instalar.

A leitura de “Bem Viver” é um mergulho num pouquinho de saúde. O conceito, que também pode ser chamado de movimento, retrata um mundo novo, ainda em construção, desenhado com outras formas de organização social e práticas políticas. A filosofia indígena é a essência do Bem Viver.

Seguem alguns pontos do livro que podem ajudar a entender melhor o conceito:

“Para obter essa transformação civilizatória (Bem Viver), é preciso inicialmente desmercantilizar a Pacha Mama ou Mãe Terra, como parte de um reencontro consciente com a Natureza. É um desafio especial para quem vive nas cidades – que se encontram, no mínimo, distantes da natureza. Os habitantes das cidades devem entender e assumir que a água, por exemplo, não vem dos supermercados ou da torneira”.

“A economia deve submter-se à ecologia. Por uma razão muito simples: a Natureza estabelece os limites e alcances da sustentabilidade e a capacidade de renovação que possuem os sistemas para autorenovar-se. Disso dependem as atividades produtivas. Ou seja: se se destrói a Natureza, destroem-se as bases da própria economia.”

“Precisamos de um mundo reencantado com a vida, abrindo caminhos de diálogo e reencontro entre os seres humanos, enquanto indivíduos e comunidades, e de todos com a Natureza, entendendo que todos os seres humanos formamos parte da Natureza e que, no final das contas, somos Natureza”.

São pensamentos simples, no fim e ao cabo. Não simplórios, com querem os economistas e pensadores ortodoxos, para quem qualquer mudança precisa trazer em si a teoria do leopardismo: mudar para que tudo continue a mesma coisa.

O Festival Iris foi uma boa oportunidade para essas reflexões.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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