A conversa de ontem entre as minhas colegas de ginástica foi sobre a memória que muitas têm, ainda viva, de alguns espaços do bairro, da cidade onde todas nasceram, viveram infância, juventude, vida adulta, criaram os filhos e, agora, os netos. Não é o meu caso, mas a maioria vive no mesmo local há mais de três, às vezes quatro décadas. Nesse tempo, elas acompanharam muitas mudanças. Prédios construídos, outros destruídos. Terrenos baldios que eram diversão certa quando jovens e que hoje abrigam edifícios, escolas.
“A quem pertence a memória urbana?”, pensei eu. Sem saudosismo, porque não é mesmo esse o caso, eu me pergunto sobre o valor da memória. Quem tem o direito de privar os habitantes dela, mexer em cada centímetro do espaço que se divide anos a fio, sem pedir licença. Todos os administradores têm esse direito, vocês vão responder. E é verdade.
Alguns símbolos ficam, porém. Alguém já imagino a Gávea sem a Pedra? O Pão de Açucar sem o bondinho? A Glória sem o relógio? Não é só o mar de Copacabana que define nossa cidade.
Mas sempre que penso nesse tema eu acendo a lembrança de uma excelente palestra que assisti em 2015, proferida pela professora e doutora em História Margarida de Souza Neves. Estávamos, naquela época, comemorando os 450 anos do Rio. Comemoração meio canhestra, porque o momento político não convidava para festas, com um golpe contra a presidenta Dilma Roussef em curso.
A palestra foi no Jardim Botânico, e a professora nos deu alguns bons subsídios para reflexão, sobre como se vai tecendo a memória urbana, de como se vai construindo nossas próprias memórias. Sorvete de polvilho e mate nos lembra… praia. Caldo de cana e pastel nos lembra feira livre. Não é um bom exemplo de tecidos de memória?
E Carmen, na ginástica, trouxe o tempo em que o terreno que hoje abriga uma escola ainda estava vazio e era usado por ela e por várias amigas. Faziam ali piquenique, festas ou simples reuniões. Sem medo de nada.
“Era uma beleza. Naquela época, não tínhamos medo, como agora. E olha que as ruas eram mais escuras. Mas aqui no bairro todo mundo se conhecia, nunca tivemos problema algum de falta de segurança”.
Foi só a Carmen puxar o fio da memória, que todas entraram na dança. Uma se lembrou de quando a atual loja de ferragens era uma padaria; outra buscou na lembrança um açougue, que virou um bar e que virou outro bar para hoje ser uma moderna cafeteria.
Muita modernidade pode assustar quem vive longe das tecnologias e prefere se expressar de outra forma, fazendo contato com miudezas, valorando mais as relações do que os dispositivos para se alcançar coisas. As cidades, quando se tornam grandes demais, vão alijando quem externa tais preferências. Uma das amigas contou que acabara de passar por uma lavanderia, erguida no lugar de uma bela e tradicional lanchonete, onde não há ninguém para atender.
“Ah, não gosto mesmo. Um dos meus momentos prediletos é quando eu vou entregar meus lençóis para o Sr. Alberto da lavanderia. Ele é português, como meus pais. Batemos sempre um bom papo, ele me conta muita coisa legal lá da terrinha. Agora, vê se eu vou trocar esse momento tão gostoso para ficar numa loja sem conversar com ninguém! Quem vai lá, geralmente leva um telefone celular e fica fazendo a mesma coisa que faz em casa, um comportamento que
Margarida de Souza Neves tem se dedicado ao estudo da memória e, para isso, ela conta com o auxílio do pensamento do historiador francês, especialista em Idade Média Jacques Le Goff. É dele o pensamento ampliado e citado por Margarida em “A Educação pela Memória’, que diz que toda memória é “essencialmente individual e constitutivamente social”.
Para a professora Margarida, há três tipos de memória: a memória instrumental, aquela que se memoriza sem nenhum envolvimento (quem foi obrigado a decorar tabuada sabe do que se está falando); o devaneio – “ sempre passível de ser despertado quando algo toca a fibra sensível de nossas lembranças infantis” – e a rememoração total, aquela que nos arranca, involuntariamente, do presente e nos transporta para o tempo passado.
É complexo. Diz Le Goff:
“A memória, onde nasce a História, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”.
É função da memória, portanto, como também é função da História, estabelecer liames entre o passado, o presente e o futuro.
“ E, se a memória procura salvar o passado, essa ação está longe de ser — como muitos parecem supor — um mero resgate, mas sim um processo direcionado a atuar no presente e a orientar os caminhos do futuro”, escreve a professora Margarida para o site “Teias’, no artigo que intitulou de “Educação pela memória”.
Meu objetivo aqui não é o de aprofundar pensamentos teóricos, mas me servir da teoria para enriquecer as reflexões que compartilho com vocês. A partir de uma percepção de quão importante é o espaço urbano, sua memória e concepção para os moradores, seria possível imaginar políticas públicas que pudessem respeitar o pretérito e torná-lo presente?
Na verdade, a fala de Carmen afetou-me mais diretamente quando ela discorre sobre o momento em que descobriu um pedaço, mínimo, do trilho de trem que ela costumava pegar para ir ao Centro. Ali, no meio de tantos prédios novos, carros, bicicletas com e sem motor, que tornam, para ela, o canto onde mora um lugar pouco afável.
Em 2008 eu estive na China. Fui a convite de uma empresa que estava promovendo, num campus universitário, um encontro com urbanistas e arquitetos do mundo inteiro para debater sobre “Cidades Sustentáveis”. Era a primeira vez que eu ouvia essa expressão, não poderia deixar de ir e ouvir o que significava. Minha memória “rememoração” me transporta para a sala onde estava acontecendo a conferência do ex-prefeito de Bogotá Enrique Peñalosa, conhecido por ter conseguido acabar com a violência naquela cidade colombiana. Em sua fala, ele traduziu assim o conceito de cidade sustentável:
“Basicamente, é uma cidade que não assusta seus moradores”.
Seria tão bom se os administradores atuais levassem isso em conta.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.