A guerra da folia que remete ao nosso meio ambiente
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“O balé da boa calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer lugar está sempre repleto de improvisações”

                          Jane Jacobs, urbanista do século XX

Sentei-me ao lado dela, o ônibus estava vazio, deu para exercitar o convício social e começar um papo. Conversa vai, conversa vem, fiquei sabendo que ela tem uma década a mais do que eu, mas ambos estamos numa idade em que se gosta de trazer a memória à tona. O assunto foi Carnaval. Tanto na rua dela, quanto na minha, um bloco tinha passado ontem, perturbando a paz no local.

Este ano não estou reclamando muito da bagunça. Ontem me esbaldei com a cena do carro pipa jogando água no pessoal. Até me deu vontade de me largar atrás daqueles pingos, tamanho o calor que fazia.

Já em casa, corri aos meus arquivos, para trazer aqui um texto que escrevi há oito anos, quando eu era colunista do site G1. Era dia de Carnaval e eu fiz, então, o mesmo que fiz hoje pela manhã. Caminhei pelas calçadas ainda tranquilas e fui acompanhando, aos poucos, o balé chegando.

Em 2014, encontrei-me com um menino, chamado Felipe. Segue o texto, copiado do G1:

“Felipe é um menino de 12 anos,  óculos de lentes grossas, camisa de malha e short a vestir um corpo muito fino, estava ali, preparando sua banquinha para vender enfeites aos foliões. Seu perfil pode ser considerado o de um trabalhador infantil. Chego perto, puxo conversa.

—- Quem comprou tudo isso para você vender?

—- Meu tio. Ele gastou mais de R$ 1 mil.

—- Poxa! E quanto você ganha por dia?

—- Ah, depende. Tem dias que ganho R$ 200,00, tem dias que ganho R$ 400,00…

Enquanto fala, vai tirando de um saco de plástico preto os objetos que vai expor na banquinha de madeira improvisada. Uma rosa para pôr no cabelo, sacos e mais sacos de serpentina, confete, spray de espuma. E um arco que imita duas orelhas de rato. Apertando ele acende, me avisa, bem infantil. Mas não conseguia fazer funcionar a traquitana. Mudo de assunto:

— Você estuda?

Filipe para de escarafunchar o grande saco preto e olha para mim, bem sério:

— Claro, né? Estudo na Escola Argentina, lá perto da minha casa, em Vila Isabel.

O tom que ele usou para me responder foi de quem já teve que responder a mesma pergunta inúmeras vezes. Bom sinal, penso. Se está sendo tão inquirido é porque as pessoas estão se afetando pelas campanhas feitas por governo e sociedade civil no sentido de alertar os cidadãos quanto aos problemas gerados pelo trabalho infantil em substituição à escola. Não me parece ser o caso de Filipe. Perguntei o preço do colar colorido:

—- Custa R$ 7. É o mesmo preço dessa flor — se apressa em dizer.

—- E quem é que diz quanto você deve cobrar?

—- É meu tio. Mas ele também pergunta é para os outros que estão aqui vendendo. Todo mundo está cobrando o mesmo preço pela flor, quer ver?

Filipe dá um grito para o ambulante que está mais à frente e confirma, aos berros, a informação que havia me dado. Sim, todo mundo cobra o mesmo preço. E todo mundo vende as mesmas coisas. Quem vence a concorrência ali é porque está com sorte. Sorte de estar no caminho de quem quer comprar. Comprei um colar colorido que agora virou enfeite para a minha estante nesses dias de folia”.

Por onde andará Felipe hoje? Ainda vendendo suas traquitanas pré-folia?

Uma ordem de constância se impõe aos meus pensamentos: Carnaval.

E um fato novo também se impõe: hoje a rua tranquila se arma contra a folia.

As fotos que postei aqui, tiradas por mim na rua ao lado, mostram a estratégia montada pelos porteiros para defender o patrimônio arquitetônico e urbanístico da sanha dos jovens, usualmente alcoolizados, comme il faut.

Não estou zangada com isto. Mas me permito divagar, refletir. No caso, a reflexão me leva a uma outra depredação que o homem faz, e que está se tornando fatal, aos bens naturais comuns a todos.

Enquanto caminhava por entre os canteiros cobertos de telas, meu pensamento foi longe. Estou lendo “Arrabalde” (Ed. Companhia das Letras), de João Moreira Salles, jornalista que decidiu morar no Pará durante três meses para contar sobre a colonização da Amazônia. Em alguns trechos, vai-se ficando com a exata sensação de que a humanidade não tem muito jeito.

Sentindo-se superior a todos os outros seres vivos do planeta, o homem não contém sua sanha exploratória e extrativista. Tudo o que tiver em seu caminho será depredado se o seu conforto, o seu prazer, o seu sentimento de saciedade estiver em jogo.

Em conversa com o fundador da cidade paraense de Paragominas, Célio Miranda, o autor de “Arrabalde” conta como o agrônomo e empresário se defende da denúncia de ter se apossado ilegalmente de terras para fundar a cidade:

“Aquilo era uma região bruta, pródiga em riquezas. Para explorá-las, basta tirar o tapete verde”.

E assim estamos nós, hoje, vivendo uma forte onda de calor no Rio de Janeiro. Sem o “tapete verde”, sobram-nos a aridez do cimento, o ar poluído de carbono, de metano, os oceanos e rios poluídos.

E eu vou me irritar com a folia?

Não. Mas, bem que os foliões poderiam ter outra atitude, fazer contato com o entorno, demonstrando o respeito necessário.

Oxalá Felipe, da geração que mais sofrerá a influência da depredação ao meio ambiente, e  que hoje deve estar adolescente, consiga fazer contato com pensamentos  mais construtivos.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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