A vizinhança já sabe. Toda quinta-feira, lá pelas oito da noite, um nome ecoa forte na redondeza. O som vira esquina, entra em ruela, em beco, na praça. Até as árvores rebatem o nome que é dito com força, de maneira intensa: “Pauuuulo Freeeeire”! A voz é do ator Richard Riguetti, também conhecido como Palhaço Café Pequeno, mestre em gestão cultural. Desde que o mundo entrou em modo lento para se defender do Corona Vírus, Richard teve que trocar a rua e o palco de um teatro pela sala de sua casa. Em vez de aplausos, Richard ganha sorrisos e muitos comentários, que vê pela telinha plana de seu computador.
“É deste jeito. É o que se tem para hoje”, diz Riguetti, entrevistado no dia 9, exatamente poucos minutos antes de sair para comemorar o nono aniversário da Lei municipal dos Artistas de Rua. Depois da promulgação da lei 5.429/2012, Richard e tantos outros profissionais que espalham sua arte pelas calçadas, praças, becos, ruas e avenidas das cidades puderam ter o direito de trabalhar sem ter que pedir autorização. É só avisar que vai fazer, e pronto. Uma vantagem de primeira grandeza.
Mas agora… infelizmente…. a pandemia… pois é…
A arte de rua também está cerceada, isolada. Mas, longe de se sentirem injustiçados pelo destino cruel, os artistas de rua, ou pelo menos alguns deles, como Richard, buscam uma nova maneira. Como diz a geração millenial… é preciso se reinventar. No caso de Richard, ele encena seu monólogo “Paulo Freire, o Andarilho da Utopia” no palco montado num território com cerca de três metros quadrados: a sala do apartamento que habita.
Até chegar a este momento e se considerar pronto para o desafio, porém, Richard tentou um outro modo de continuar trabalhando: lançou cursos de gestão cultural online.
“Utilizei uma dessas plataformas que se criaram na pandemia. Mas, quando acabei de dar a primeira aula, eu chorava. Pedi desculpas à turma. E parecia que eu tinha acabado de carregar um piano de cauda às costas. Os alunos, porém, disseram que eu não tinha que pedir desculpas porque a aula tinha sido muito boa. Aí fiz uma segunda vez e, quando acabei, a sensação era de que eu tinha carregado um piano de sala. Então, dei a terceira aula e, quando acabou, parecia que eu tinha carregado um acordeom. Na quarta aula, mudou para um violino. Foi quando percebi que era possível promover encontros, mesmo entre as pessoas que estavam em isolamento”, explica Richard.
O artista experimentou um voo mais alto ainda. Fundador da Escola Livre de Palhaços – Eslipa, ele decidiu abrir um curso de palhaço também online. E o curso foi muito bom. Foi então que ele disse a Luiz Antonio Rocha, parceiro na jornada da peça sobre Paulo Freire: “Estou pronto para fazer ‘Paulo Freire’ online, vamos lá!”.
Aqui, vale a pena relembrar: “Paulo Freire, o Andarilho da Utopia”, é um monólogo que trata da vida do educador, filósofo, considerado o Patrono da Educação Brasileira. Está em cartaz desde 2019 e já rodou praças, teatros, escolas, quilombolas… É, como diz Riguetti, “uma peça que foi feita para ser encenada em todos os lugares: no palco do Theatro Municipal ou em cima de um caixote de rua”. Quando ele disse isto numa entrevista logo no início de sua turnê, não contava ainda com a hipótese de encená-la dentro de sua própria casa. E sozinho.
“Não foi nada criado, foi acomodado. A rua realmente é meu mestrado, é meu doutorado. Aprendi na rua a criar relações, vínculos, cumplicidade. E, a partir da cumplicidade, aprendi a aguçar a pessoa na sua sensibilidade e, ao mesmo tempo, a estimular sua potência. Começamos a fazer isso pela plataforma, online. Nosso ato de cenopoética não começa antes de eu estabelecer essa conversa com as pessoas. Fica todo mundo com o vídeo ligado e eu vou recebendo, vou conversando, como se eu estivesse na praça, no nosso local de encontro. Somos seres gregários, todo mundo gosta de se revelar e de ver os outros se revelando. Então é muito interessante quando, por exemplo, eu pergunto para uma pessoa: ‘Você está em qual cidade’? Uma responde: ‘No Amazonas’, a outra responde que está na Irlanda, e começa esse imaginário a ampliar. E quem está no isolamento social amplia as paredes da arquitetura física para uma arquitetura imagética, poética. E isso acontece ali na hora”, explica o artista.
E aí entra a poesia. Não. Na verdade, a poesia está desde o momento em que o artista decidiu encenar a peça em meio à pandemia, quase um ato de resistência diante das agruras que nos rodeiam nos dias de hoje. Ou, como ele prefere dizer, “é o que tem para hoje”. Mas o que é melhor é que Riguetti achou, sim, a arte na tela plana e fria do computador.
Foi logo no início que houve o encontro da tecnologia avançada com a essência da arte. Quando as pessoas não conseguiam se conectar, e ficava aquela história de transmissão intermitente, de vozes picotadas, Richard lembrou-se de tempos atrás, quando ouvia partidas de futebol no rádio, sentado no colo de seu avô.
“Não tinha televisão, a gente se sentava na sala e o rádio ficava fazendo aquelas ruídos característico de quando perdia as ondas, e aí criava uma certa necessidade corpórea de uma atenção maior porque a imperfeição do som fazia com que eu tivesse que ouvir mais atentamente. Aí, aqui em casa, durante a peça, em alguns momentos da transmissão, quando aconteciam os engasgos de som, eu me transportava para aquele menino no colo do avô, ouvindo a partida do Ponte Preta contra o Palmeiras. O locutor falava, de repente cortava…. “e a bola saiu pela lateral”… E eu tinha que imaginar e completar o trecho que não ouvi. Tinha que completar com a minha imaginação.”, disse Riguetti.
É nisto que o ator aposta. A imperfeição da transmissão vai aguçando mais, ampliando a qualidade humana de cada um, ampliando a escuta. Vivemos, como diz Riguetti, numa era “de informação e de opinião”. Isto quer dizer que todo mundo tem informação e todo mundo quer dar sua opinião sobre a informação que acabou de obter. Impossível não se identificar nessa fala.
“Poucos entram no estado de sustentação. Não há pausa, não há reflexão. Você recebe a informação e tem que dar logo a opinião. Mas, se você perceber, poucas pessoas falam de si. E o convite da peça é, justamente, este: falar de si. Depois que acaba, convidamos a audiência a conversar, a falar de si”.
E dá certo. Seja de um jeito ou de outro. O que importa é levar a arte adiante.
Para quem quiser assistir Paulo Freire, Andarilho da Utopia, o caminho é este. Acesse a página AQUI, escolha o dia que quer assistir, e na página do evento é só você escolher a contribuição consciente que deseja dar. Tem Ingresso solidário, Ingresso junto, e Ingresso Muito Amor! Depois, é só chegar, às oito em ponto, quando começa o espetáculo. Divirtam-se!
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.