Na rua arborizada e calma tem um desenho na calçada, feito a giz. É a gravura de um jogo de amarelinha, com Céu e tudo. A maioria das pessoas adultas passa por cima e nem percebe o riscado. Alguns passam e até reparam, andam mais devagar. Talvez um devaneio surja, talvez a memória puxe tempos idos. Mas, é só.
Já as crianças, ah! Não há uma que não pare e já saia pulando. Umas chegam a procurar pela pedrinha que ajuda a avançar nas casas. Algumas mães, ou alguns pais, apressados, às vezes interceptam a brincadeira, premidos pelo tempo. Limite imposto, vem reclamação na certa: a criança quer brincar!
É só dar mais uns poucos passos e o passante atento, com ou sem criança, lê a provocação escrita sabe-se-lá-por-quem: “Você já brincou hoje?”
A palavra brincar tem origem latina e vem de vinculum que quer dizer laço, algema. É derivada do verbo vincire, que significa prender, seduzir, encantar. Seja como for, brincar é verbo transitivo indireto, ou seja, precisa de um objeto para completar seu sentido.
No fim das contas, no frigir dos ovos, para a brincadeira ser boa precisa de mais alguém para brincar junto. Por isso se diz que brincar ajuda no desenvolvimento. Porque brincar exige relação.
Estamos em tempos complexos. Mas já estivemos em tempos complexos piores. A vacinação está promovendo algum alívio no número de mortes por Covid, e isto está bastando para que as pessoas consigam começar a pensar em voltar a se encontrar novamente. As marcas dessa pandemia ficarão. Mas a vida quer passar, portanto é tempo de buscar alguma alegria nas coisas mais simples, sem sofisticar demais para não causar impacto. Vamos brincar. E vamos, acima de tudo, buscar lugares na cidade que possam servir para isso. A rua, sim. Ar fresco, sol, movimento, outras crianças, outras pessoas. É assim que somos.
Está acontecendo no Rio um Congresso Internacional de Arquitetura, e isto é bom. Embora as palestras não estejam, ainda, disponíveis para o grande público, é interessante saber que há profissionais pensando no espaço que habitamos. Para melhorá-lo, sem dúvida, sobretudo quando isso tudo passar.
Numa Conferência Internacional parecida, na primeira década do século, alguns estudiosos foram chamados para contar seus pensamentos para tornar as cidades sustentáveis. O encontro foi na cidade chinesa de Shangai, e naquela época nem sonhávamos viver o terror da pandemia. Um dos conferencistas foi Enrique Peñalosa, prefeito de Bogotá no período de 1998 até 2001, conhecido por ter – em parceria com Antanas Mockus – transformado uma das cidades mais violentas do mundo (naquela época), numa cidade modelo. Mockus e Peñalosa usaram meios pouco ortodoxos para isto.
Em sua palestra na conferência em Shangai, Peñalosa explicou de maneira simples o que seria uma cidade sustentável:
“É uma cidade que não ameaça seus habitantes”.
Peñalosa e Mockus construíram muitos parques, bibliotecas, ciclovias. (Sim, claro, também construíram rodovias). Dando espaço para caminhadas e brincadeiras, respeitaram a ordem natural: seres humanos se sentem bem quando estão em movimento. Se for brincando, então, melhor ainda.
Já que estamos em tempos de reconstrução para se pavimentar novos caminhos, não custa lembrar outra reunião, também de arquitetos e urbanistas, que aconteceu entre as duas Grandes Guerras. Foi em 1933, o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (Ciam) aconteceu a bordo de um navio, o “Patris II”. A época era efervescente para os arquitetos, como é possível imaginar, já que o período entre as duas grandes guerras com certeza exigiu um esforço considerável de reconstrução dos espaços públicos.
Algumas das resoluções conseguidas naquele encontro estão no livro “Carta de Atenas”, escrito por Le Corbusier, arquiteto franco-suíço que viveu de 1887 a 1962 e influenciou bastante a arquitetura brasileira. Lê-se na publicação, por exemplo, que “O primeiro dever do urbanismo bem planejado é pôr-se de acordo com as necessidades fundamentais do homem”.
A hora é de se perguntar: do que mais necessitamos hoje, nesses tempos complexos de tanta luta, tanto luto, tanta devastação, tanta dor? Como vamos encarar a vida pós-pandêmica, considerando que agora conhecemos o poder destrutivo que a humanidade tem sobre o meio ambiente ao dar espaço para extravasar as angústias no consumo? Quais os caminhos mais simples para se achar a alegria?
Não teremos tantas respostas. Mas, se um dia, você encontrar o riscado de um jogo de Amarelinha no chão do seu caminho, não custa parar e pular. Vai fazer bem.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.