Ela é atriz, palhaça, trapezista, brincante, bailarina integra o grupo Teatro de Anônimo desde sua fundação. Há dez anos Angélica é professora de circo na escola Casa Monte Alegre de educação infantil para crianças de 1 ano à 6 anos e conta um pouco sobre sua experiência no Circo em Família. Ana Lobo entrevista Angélica Gomes
Formada pela Escola de Teatro Martins Penna(1992), Escola Nacional de Circo(1995), e na Faculdade de Dança Angel Vianna (2011), Angélica desenvolveu trabalhos na ONG Se Essa Rua fosse Minha e no grupo cultural Afro Reggae. Nos anos de 1990 participou da Bolsa VIRTUOSE — MINC em Montreal (Canadá) marcando presença em vários festivais de circo no Brasil e em países como Suécia, Itália, Espanha, Argentina e Alemanha.
Compartilhamos um café com prosa, Angélica trouxe para essa ocasião seus relatos pessoas e suas referências, além de livros importantes sobre a história do circo no Brasil. Falamos de assuntos densos com a leveza de um encontro casual e parte dessa conversa você confere aqui na Entrenós.
Ana Lobo: Para início de conversa acho que podia falar um pouco sobre sua trajetória e sua história no Teatro de Anônimo.
O Teatro de Anônimo tem 33 anos, um grupo novinho. Nos conhecemos no Colégio Visconde de Cairú, no Meier, subúrbio do Rio e seguimos juntos até hoje. Passamos rapidamente pelo teatro convencional e montamos o texto Anônima, de Wilson Saião, que serviu basicamente para batizarmos o grupo de Anônimo. Depois, descobrimos que Teatro de Anônimo, na definição do filósofo Alessandro Fesen, é o teatro situado no âmbito do imaginário popular, onde não se sabe a origem da criação. Como nossa pesquisa se baseia na cultura popular, tendo as danças populares, capoeira, futebol como forma de treinamento do nosso teatro, achamos que tinha tudo a ver com o nosso fazer e assumimos o nome desde então. Estávamos aí começando a trabalhar com teatro de rua e percebemos que no cenário que a gente vivia tinha um movimento bem forte de poesia oral nas praças da cidade. Esses poetas marginais nos inspiravam, era interessante a comunicação que eles estabeleciam com o público, as rodas eram gigantescas, o público se identificava com aquela poesia política, que falava de um cotidiano perverso das pessoas. E a gente, que já tinha essa vontade de estar na rua, foi fácil se apaixonar por aquela forma diferenciada de verbalizar, jogando com as palavras de maneira livre e criativa. Montamos um espetáculo que demos o nome de “Flash da Cidade”, tendo como texto, poemas de alguns poetas desse movimento. Na época não conseguimos “viver dele”, mas era um compromisso, nos encontrávamos depois da jornada de trabalho diário para ensaiar.
Em 88, centenário da Abolição, fizemos muitas apresentações por participarmos do projeto “Da Lei do Ventre Livre ao Menor Abandonado” com a gestão da ASSEAF na época. Fomos em escolas, comunidades com D.Marta, Mangueira, Morro do Campinho, associações de bairros, praças, instituições de atendimento a menores infratores…. Rodamos muito com o espetáculo e depois ficamos um ano parado, tentando entender o que fazer com ele e de que forma a gente podia comer deste trabalho. Fomos buscar outras formações de interesse de cada indivíduo, João foi pra Unirio, Regina foi fazer Escola Nacional de Circo, eu fui para Martins Pena e o Márcio, ficou organizando nosso material criado até aquele momento. Quando nos reencontramos, montamos o Cura Tul, uma palavra que brinca com o sentido de cura através da cultura, tendo a poesia marginal de Zé Cordeiro, como base.
No espetáculo tínhamos personagens como a velha na feiticeira, o mal agouro de perna de pau. A gente entendia que para fazer espetáculos na rua era preciso dialogar com a rua, criar relação com as pessoas que passavam por ela. De que maneira afetar aquela pessoa que não pode parar por uma hora para assistir um espetáculo porque vai perder sua condução de volta pra casa, mas, fazer com que ela leve uma imagem forte consigo. Nesse sentido, o circo era uma boa ferramenta e a gente começou a ensaiar alguns números de circo e logo, logo, percebemos que não tinha mais volta, nos tornamos um grupo de circo, ele mudou nossas vidas. Foi com o circo que começamos a sobreviver e nos profissionalizamos.
O T.de Anônimo sempre foi, desde sua origem, um grupo agregador. Seus integrantes, sempre estiveram envolvidos em outros projetos. As mulheres do grupo participavam da Cooperativa Abayomi, que desenvolve as bonecas negras, junto da Lena Martins, moradora aqui de Santa Teresa, trabalhei no projeto Circo de Todo Mundo, financiado pelo Cirque du Soleil que tinha como parceiros Teatro de Anônimo, Fase, Se Essa Rua Fosse Minha e o Afro Reggae. Atuava como educadora neste projeto dando aula no Se Essa Rua e implantando o circo no Cantagalo. O Anônimo é uma família e como toda relação longa, há momentos em que a gente precisa rever nosso lugar. Sempre fiz muita coisa. A oficina permanente de acrobacia aérea do grupo, acontece desde 99, deu início comigo e Regina, mas entendo que meu trabalho atual é um desdobramento dessa experiência direcionando meu interesse no trabalho com as crianças, com as famílias. Uma amiga coach fez uma consultoria pra gente( Teatro de Anônimo). Ela me ajudou muito ao avaliar as diferenças e potencialidades de cada um dentro do grupo, depois disso vi que me especializei em circo e que gosto das relações que o circo gera na formação das crianças.
Você tem filhos, como foi conciliar a maternidade com essa rotina?
Os meus filhos tem uma diferença de idade de seis anos. Quando Caio, o mais velho, era bem novinho ele frequentou a Monte Alegre mas foi um curto período. Eu voltei a treinar quando ele ainda tinha meses. Foi super difícil se deparar com o abdômen totalmente distendido! O cérebro mandar o comando e o corpo não reagir, mesmo tendo conhecimento de anos de treinamento. É quase deprimente e seu corpo sente. Uma amiga, Paula Preiss, me ajudou muito nesse momento com o Caio, eu treinava e amamentava. Quando começou a ir pro chão, era engraçado porque ele sempre voltava imundo com a poeira da Fundição. Durante um período o Caio frequentou uma creche no Centro/Lapa. Ele tinha uns horários rígidos e eu tinha que deixá-lo no horário que a creche estabelecia. Ela de 8h às 17h, não podia ser antes nem depois. Isso me deixava chateada, mas não tinha outra alternativa naquele momento e ele sobreviveu. Quando tive o Lucas, eu estreitei a relação com a Monte Alegre. Me tornei professora da escola e nessa época, o Caio muitas vezes ia comigo nas aulas e as crianças amavam, chamavam ele de mestre Caio.
A convivência com as crianças é uma espécie de laboratório ne?
Sim, uma vez fiz uma exposição na aula que chamei “Um palhaço no mundo”, baseada nas fotografias dos palhaços do filme I Clowns, de Frederico Felline. Filme que influenciou minha geração. Expus fotografias de palhaços de diferentes lugares. Estava muito animada com a pesquisa, mas uma das alunas me chamou atenção para uma questão. Me perguntou se não tinha mulheres palhaças! Ai que me toquei, que tinha uma pesquisa incrível mas fui pelo lugar comum, e é claro que tinham muitas palhaças talentosas para eu mostrar, mas que naquela época não, nossas referencias eram realmente de palhaços. Mas não estamos mais nessa realidade. Depois disso, claro, apresentei pra turma várias mulheres palhaças mas essa sem dúvida foi uma coisa que aprendi com as crianças.
Com o circo em família entendi que precisava rever meu vocabulário mesmo. Antes dizia que as oficinas eram para pais e mães mas depois decidi divulgar como uma oficina para crianças e responsáveis, já que temos famílias com perfis diferentes.
E como foi com o Circo em Família ?
Na oficina as técnicas circenses servem para estreitar relações, promover encontros entre crianças e seus responsáveis. Eles descobrem juntos seus medos, se desafiam, ajudam uns aos outros. Trabalhamos a confiança, os limites, o equilíbrio. Mostrando que todo mundo pode brincar.
Participei do 3º Incrível Festival de Circo do Sana com o Circo em Família, recentemente. Pessoas que não tinham filhos se interessaram. Um casal que estava lá presente pegou uma criança emprestada para poder participar. As pessoas de um modo geral se interessam pela brincadeira.
A oficina foi incrível, super divertida. Acho que é isso, o Circo em Família é uma oportunidade de comunicação física entre pais e filhos. Um momento em que essas pessoas vão ter para se relacionar de uma outra forma, se conhecer e fugir da rotina do dia a dia, que muitas vezes não possibilita uma interação mais próxima, afetiva. Os responsáveis sempre se ocupam de cuidar, mas essa parte mais lúdica é deixada de lado, a oficina resgata essa socialização.
Alguns responsáveis ficam tímidos no início, se recusam a fazer certos exercícios, mas é importante que se entenda que a proposta não é somente para as crianças, mas para toda a família.
Para que se interessa em saber mais sobre Maria Angélica Gomes e suas ações no Teatro de Anônimo, sugerimos uma visita ao site do grupo http://www.teatrodeanonimo.com.br/
E para os leitores pesquisadores sobre o tema vale conferir o livro de Alice Viveiros de Castro chamado O Elogio da Bobagem ( 2005, p 114–117), em que a autora conta um pouco da história do maior Encontro de Palhaço da América Latina, O Anjos do Picadeiro, idealizado e dirigido pelo Teatro de Anônimo.
Como aquecimento para as próximas edições do Circo em Família aí vão algumas fotos de famílias circenses, que rodaram o Brasil no Século XX, partilhado experiências entre gerações e fazendo história. As imagens foram extraídas do livro O Circo no Brasil de Antônio Torres.
Imagem 1 — Família Teresa- Cardona, trupe que desembarca no Brasil diretamente da Espanha nos primeiros anos do séc XX para fazer morada no Circo Spinelli no Rio de Janeiro
Imagem 2: Família Martinelli em 1929
Imagem 3: Família Costa Mello . Sem data
Imagem 4: Família Zanchettini. Circo viajando pelo interior do Paraná em meados de 1950.
09 de novembro de 2019