O espetáculo Cheirinho de Mato, de Chay Torres, esteve em cartaz durante o mês de setembro de 2019 com . Cada apresentação ouve uma participação especial. No dia 14/09, as crianças da Casa Monte Alegre (Grupo Estrela do Mar e Ninjas) estiveram em cena. A peça musical apresentada no Parque das Ruínas revisitou as raízes brasileiras com histórias autorais, sonoplastia ao vivo, dança e alegria.
Confira a entrevista de Ana Lobo com Chay Torres
Ana Lobo : Não tenho dúvidas que “Catucando História para Cantar” tenha sido uma experiência muito especial. Primeiro porque você divide os palcos com sua mãe, a que mais intensamente acompanhou a sua infância, e segundo por afirmar o “Movimento artístico e musical para Infância” em um momento histórico tão delicado para a cultura do nosso país. Obrigada por isso. Gostaria que nesse primeiro momento você falasse um pouco sobre a sua trajetória. Por que o interesse em trabalhar com crianças e cultura popular?
Chay: Sou filha de músicos, nasci em meio a uma turnê de meu pai, o contrabaixista Paulo Russo (falecido recentemente, em 2018). A música é parte de minha formação desde a barriga. Minha mãe Ivone Torres se profissionalizou como educadora musical depois de separada de meu pai, (eu tinha 5 anos) dessa forma, experimentar sons, ouvir histórias, brincar de teatro foi vivenciado com minha mãe. Na casa de meu pai, a música era algo sagrado. O contrabaixo acústico dele era intocável, parecia uma divindade em casa, mas havia o piano, nesse eu podia tocar. Já com minha mãe era muita brincadeira! A nossa casa era aquela em que todas as crianças do prédio vinham brincar, pois podíamos fazer o que nenhuma mãe deixava: pular no sofá, desenhar nas paredes, jogar bola em casa, maquiar como quiséssemos, vestir suas roupas e sair desfilando pela rua…rsrsrs. Minha mãe foi uma excelente “professora de artes”!
A escola não ocupava este lugar como hoje. Aprendi com minha mãe também o papel social da arte. A via subindo e descendo as comunidades para dar aulas de música para a criançada. Neste tempo não havia as Ongs, ela fazia tudo como voluntária. E eu acreditava vendo seu empenho e acredito ainda hoje, que o artista pode ensinar sua arte e contribuir na formação de um mundo mais sensível e potente. Neste meio me profissionalizei como bailarina, cantora e atriz antes de entrar na universidade. Fui mãe aos vinte anos e conciliei a maternidade, família e trabalho. Trabalhei em ongs, escolas, projetos variados na educação e no campo artístico até entrar para a Rede Pública Municipal de Ensino, campo fértil de pesquisa. Me formei em Licenciatura em Artes Cênicas pela UNIRIO e passado dez anos conclui o mestrado em Ensino das Artes Cênicas com a pesquisa sobre “A Escuta,O Corpo e o Jogo na preparação do aluno-ator”. Em meu trajeto na pedagogia teatral, a artista que sou permeia por completo o ensinar. A musicalidade para a cena, o corpo dançante e a improvisação do jogo dramático e teatral são a base dessa preparação do aluno-ator para a cena. O processo e o produto artístico se entrelaçam, dialogam e estão em delicada harmonia. Digo delicada porque é muito fácil matar um processo feliz em prol do produto artístico e vice versa, se perder no processo e se afastar da especificidade da linguagem artística.
Foi na pesquisa da sensibilização musical para a cena, em 2010, quando comecei a dar aula de teatro para educação infantil na EM Machado de Assis em Santa Teresa que mergulhei na contação de histórias. Porém, eu queria mais ferramentas de sensibilização da escuta. Sem escuta não há corpo, não há jogo! E como foi difícil despertar tal escuta com esse alunado. Procurei minha mãe que estava trabalhando com grupos de contação de histórias compondo canções em temáticas variadas e também conheci o trabalho de construção de instrumentos musicais feitos com sucatas pela professora Niágara Cruz. Aprendi várias canções inéditas com minha mãe e levava para o jogo dramático e para minhas contações em sala de aula.
Resultado: encantamento. As crianças ficavam completamente encantadas. Assim sugeri a minha mãe de formarmos um grupo e tudo eu testava na sala da educação infantil. Assim nasceu CATUCANDO HISTÓRIA PRA CANTAR e transbordou a sala de aula para teatros, rádios, centros culturais.
Já o trabalho com cultura popular teve início com alunos de 6º ano do Ensino Fundamental em 2004, quando entrei na rede pública. Cada série dava conta de uma temática, para dessa forma o aluno chegar ao 9º ano tendo passado por uma formação básica na linguagem das artes cênicas. Ex: teatro elizabetano, mitologia grega, teatro brasileiro, mitologia indígena e africana, dentre outros. Mas a resistência que encontrei quando abordava a mitologia africana era gigante. Pais proibiam os filhos de lerem e fazerem personagens da cultura afro. Pra eles, tudo era coisa da macumba e renegavam nossa raiz. Ali pensei, se um dia eu trabalhar com pequenos, a mitologia africana e indígena serão a base, assim eles terão outras referências de reis, heróis, príncipes e princesas. E esse momento chegou em 2010.
Fazer parte do MAMI, Movimento Artístico e Musical para Infância foi o que me levou a conhecer a Casa Monte Alegre. É um coletivo de artistas de diferentes formações, atores, escritores, contadores de história, pesquisadores, músicos, compositores, cantores que participavam das gravações da Rádio Maluca da Rádio MEC apresentada pelo saudoso Zé Zuca, cuja musicalidade é o ponto de ligação. Eu divulgava semanalmente os espetáculos realizados em Santa Teresa nas escolas do bairro. Minha segunda filha, Giulia vinha junto, bebezinha e não queria ir embora quando eu ia à Casa Monte Alegre. Um ano depois, em 2018 estava Giulia, aluna e eu mãe e professora de teatro da CMA.
Ana Lobo: O que vocês trouxeram para essa temporada no parque das Ruínas? Como surgiu o espetáculo especificamente?
Chay: Em 2018 lançamos nosso primeiro álbum: CHEIRINHO DE MATO com canções e histórias musicadas que são parte de nosso repertório na temática: mitos indígenas, africanos e lendas brasileiras. Uma das músicas, a CURUPIRA, foi finalista no Festival da Rádio MEC 2018 na categoria MPB Infantil. Fizemos um espetáculo teatral com essa trilha sonora que ganhou esse formato nesta temporada do Parque das Ruínas: CHEIRINHO DE MATO-HISTÓRIAS CÊNICAS E MUSICADAS. A ideia era a de cada apresentação termos um convidado especial diferente. Tivemos as contadoras de história Silvia Castro, Rute Casoy e Paulinha Cavalcanti, o escritor mirim Abhay Zukoski, a professora de capoeira Enir Ventura, a cantora mirim Giovanna Saboia, a violinista Duda Serra Lima e alunos de teatro da Casa Monte Alegre e do Núcleo de Artes Avenida dos Desfiles. Trazer alunos para a cena comigo foi inédito. Uma experiência ímpar.
Ana Lobo: Como foi a participação das crianças da Monte Alegre no espetáculo. Existe uma relação entre as suas aulas na Casa Monte Alegre e aquilo que leva para o palco? De alguma forma a experiência como professora contribui para o processo criativo?
Chay: Quando comecei a trabalhar na Casa Monte Alegre adaptei os planejamentos da educação infantil tendo então o brincar como base do ensinar (antes parte do ensinar). Histórias, músicas, sons, personagens, livros, instrumentos e dança passaram a compor a aula de teatro com esses pequenos. O repertório musical do CATUCANDO junto ao grupo Tiquequê, Palavra Cantada, Grupo Triii e músicas folclóricas são a nossa trilha musical. Do CATUCANDO, as músicas que mais fazem sucesso são: Saci, Sereia e Curupira. Saci e Sereia são movimentos opostos: um rápido, veloz, malandro, a outra delicada, movimentos ondulantes, feminino. Por essa diferença escolhi essas duas músicas pra cena com alunos de dois grupos: Estrela do Mar e Ninjas( 4–5 anos).
Em aula, todos fazem todos os personagens, é brincar mesmo e muito levemente passo conceitos da linguagem teatral como “espaço cênico”, “plateia”, “adereços”, “objeto de cena”, dentre outros. Uma vez no palco, optei por caracterizá-los com figurinos, assim a vivência seria mais rica, visto a fase dessa faixa etária no entusiasmo quanto às “fantasias”. E assim tivemos a participação das mães-figurinistas, com uma percepção muito precisa como por exemplo, a blusa preta, short e gorros vermelhos para o Saci e Sereias variadas entre caudas, saias, vestidos, coroas e colares. Havia singularidade na criação dos figurinos de cada personagem.
O que foi levado pra cena é o que acontece nas aulas. O produto artístico visto é o mesmo do processo artístico do dia-a-dia. A diferença e o que tornou o que apresentamos um espetáculo, é o local- palco e a presença do público- plateia. Pude também mostrar para os alunos os bastidores, camarim, entrada de serviço, como os atores entram em cena sem serem vistos. Falamos da luz, refletores que estavam no chão, o espaço cênico que eles tinham pra se movimentarem, os limites deste espaço. Eles são muito pequenos, estavam eufóricos e felizes. Eu ali nas funções professora- artista-pesquisadora observa cada um e tudo que faziam.
Tudo do processo apareceu no momento do produto, pontos positivos e pontos desafiadores a serem trabalhado: A Escuta. Depois do espetáculo, quando retornei a sala com eles, conversamos sobre essa experiência e do porquê se dizer “Merda” no teatro. Levei novas histórias, as que ouvi da temporada com as participações especiais. De repente o produto artístico virou processo e não existiu o fim com o espetáculo.
Ana Lobo: Como funciona a relação entre as histórias catucadas de nossa cultura popular e a sua produção autoral?
Chay: As histórias são mitos e lendas. As músicas são compostas para a história. A compositora de todas as músicas é minha mãe Ivone Torres. Há músicas criadas para personagens das histórias dentro da própria história como por exemplo, “Tupã”. “Jurupari”, “Aguiri” da Lenda do Guaraná. Há música que é a própria história como Sereia, Saci e Curupira.
Ana Lobo: Teremos novas apresentações? O que fica dessa experiência?
Chay: Ainda estou digerindo essa experiência. É forte, pura, potente, feliz. CATUCANDO nasce em sala de aula, vive a sala de aula, transborda e voa para outros espaços, retorna à sala de aula e agora leva pra fora da sala os alunos que são a fonte inspiradora do trabalho. É puro movimento. É diálogo de corpo, vozes… É vida, é dinâmico. Essa experiência é o início de um novo processo. Quero estar em cena com meus alunos! Compartilhar o palco com eles é, quem sabe, uma nova fase de CATUCANDO HISTÓRIA PRA CANTAR. Não é só pra eles e sim com eles.