Há saídas para tantos colapsos?
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Minha ideia é procurar saídas, devires, brechas. Não é tarefa fácil, nesse momento de tantos colapsos. Como é meu foco de estudo há duas décadas, tento destrinchar o colapso ambiental, entender melhor o que as pessoas teimam em não entender bem. Hoje pela manhã ouvi um analista político dizer que o Brasil não pode deixar de se desenvolver, porque é isso que os países desenvolvidos querem que aconteça. Tal discurso, igualzinho, ouviu-se muito na Conferência de Estocolmo de 1972, há cinquenta anos. De lá para cá, o país de fato se desenvolveu… até a página dois. Já os danos ambientais estão quase na conclusão final, se estivéssemos falando sobre um livro.

Que tudo o que está acontecendo no Rio Grande do Sul era previsto, sim, era. Que desde 1988, quando foi criado o Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima (IPCC na sigla em inglês), os cientistas estão avisando que os eventos extremos serão o novo normal de nosso século, é só revirar um pouco os papéis para descobrir. Falemos, pois, agora que não há mais ponto de retorno:

“Mudar nossa trajetória de colapso requer não apenas parar de destruir a natureza agora, mas nos empenhar em reconstruir, na medida do possível, o que foi destruído desde ao menos a década de 1950”, aponta o professor Luiz Marques em seu livro “O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência” (Ed. Elefante, 2023).

É claro que as vidas humanas arrasadas, não só fisicamente mas com o colapso de tudo o que vinha sendo constituído como sólido ao redor, são prioridade no momento. Mas disso estamos cuidando todos nós, solidários, quer seja enviando recursos financeiros, quer seja enviando alimentos e roupas.

Quero me ocupar, aqui, da política de sobrevivência, do que é preciso fazer para naturalizarmos o que foi cimentado. Olhem vagarosamente qualquer foto da destruição que está acontecendo na Palestina. Não há um verde em volta, e isso é muito significativo. Trago uma frase da música “Subterranean Homesick Blues”, de Bob Dylan (1965): “Você não precisa do homem do tempo para saber de que lado o vento sopra”.

Mas, apesar de toda essa introdução pouco otimista, tenho também uma visão do que é possível ser feito. Porque, se não acredito numa única solução para os colapsos que estamos vivendo, por outro lado, creio que há atos que valem a pena.

Neste fim de semana que passou estive na Lagoa Rodrigo de Freitas, no aniversário de uma amiga que fez sua festa num dos quiosques à beira do monumento. Muito simpático. No caminho, dois cartazes chamaram a minha atenção porque eles usavam uma palavra que me afeta: naturalização. (A foto em destaque foi tirada por mim).

Trata-se do projeto de naturalização da Lagoa, ideia do biólogo Mario Moscatelli, que a Prefeitura encampou. O projeto começou em junho do ano passado, e já está pronto. É uma ação bem simples: retirar postes, meio-fio, pista e iluminação, depois acertar a área para a recuperar a flora (grama de mangue, samambaia do brejo, algodoeiro de praia e mangue vermelho) e, por fim, instalar um cercado protetivo e placas informativas.

As tais placas informativas chamaram minha atenção. Parei para ler. Mas fui capturada também pelo som dos pássaros que conseguiam romper o vozerio dos humanos em volta. A Lagoa, num domingo à tarde, ensolarado, atrai muita gente.

Fiquei ali um bom tempo, ouvindo e vendo. A passarada parecia toda animada, tinha ganhado de volta uma vegetação viçosa. Aparentemente, deu certo o projeto de Moscatelli. E não deve ter sido nem tão difícil assim retirar as intervenções urbanas que tinham roubado da natureza um espaço tão primordial.

Mais tarde, comentei com Emanuel Alencar, amigo e colega de profissão que milita no setor do meio ambiente, e pactuamos, via rede social, bons sentimentos  sobre o projeto de Moscatelli. E que bom que o poder público teve sensibilidade para levar adiante.

Luiz Marques, de novo, em consonância com o que eu estava vivenciando:

“Mudar nossa trajetória de colapso requer não apenas parar de destruir a natureza agora, mas nos empenhar em reconstruir, na medida do possível, o que foi destruído desde ao menos a década de 1950. Se os últimos setenta anos foram os anos da “Grande Aceleração”, ou seja, da “Grande Destruição”, os próximos decênios terão de ser os da “Grande Restauração”. É preciso apostar que isso ainda é possível. Essa aposta é, contudo, razoável se, e somente se, como indivíduos e como sociedade globalmente organizada, reagirmos com presteza e à altura do que exige agora a emergência climática e demais emergências socioambientais”.

Busquei notícias sobre o projeto bem sucedido de Moscatelli, poucas achei. Não é de se estranhar. Quem se interessa pelas coisas que dão certo e podem ser replicadas? Poucos. E a mídia precisa de muitos olhares, muitos likes, muitas análises, críticas positivas ou não. Estamos num emaranhado, imersos, quase viciados em histórias pungentes, dramáticas. Ao mesmo tempo que somos atraídos, elas nos extenuam, nos deixam de ressaca, e aí só mesmo assistindo a doramas ou a filmes de ação violento para expurgar a droga.

Mas no britânico “The Guardian” encontrei um texto que dialogou com algumas das minhas reflexões. A autora é Adriana Matei, e ela traduz a angústia que às vezes me persegue: ter microresponsabilidades com o ambiente no entorno pode tirar da grande indústria o papel que ela tem, teve e terá no colapso ambiental?

Matei sugere a leitura do livro “One Green Thing”, de Heather White, que mais me parece uma auto ajuda para se tornar uma pessoa verde. Mas acredito em sua proposta: ““A ação individual impulsiona a mudança cultural e, sem mudança cultural, as políticas globais e as soluções de mercado não funcionarão. ”

De alguma forma, os meus cuidados com o entorno são, ao menos, percebidos por alguém da vizinhança que seguirá pensando sobre o assunto. E isso é bom. Se me consola ou me tranquila com relação a tudo que estamos  e estaremos vivendo nos próximos anos? Não. Definitivamente, não.

A minha droga preocupante é o discurso que relatei no início do texto, que envolve ainda a dicotomia desenvolvimento versus preservação. Não vejo a menor possibilidade de continuarmos o desenvolvimento tipo business as usual sem assistirmos a catástrofes ambientais cada vez mais intensas. E, para quem ainda não percebeu, vale o alerta dado pelos cientistas do Inmet: a onda de calor e a seca que estão aqui no Rio de Janeiro e em outras partes do país também são eventos climáticos. E, caso continuem, também vão impactar fortemente a agricultura e a saúde humana.

Invoco Félix Guatarri para me ajudar a dar um sentido final a esse texto, que não deve concluir nada. Apenas convido a refletir. Nascido na França, em 1930, Guatarri foi filósofo, psicanalista, psiquiatra, semiólogo, roteirista e ativista revolucionário francês. E escreveu um livro chamado “As três ecologias” em 1989, que não canso de consultar. Um ano antes do lançamento dessa obra, os cientistas inauguravam o IPCC, GUatarri trazia a questão ecológica bem centrada dentro de outra questão, fundamental, a desigualdade social. A luta de classes. E avisava:

“Menos que nunca a natureza pode ser separada da cultura, e precisamos aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e universos de referência sociais e individuais”.

Sigamos refletindo.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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