A formação de cidadãos de bairro

Os desafios nos rondam. De toda parte brotam notícias que dão um ar catastrófico ao nosso presente e ao nosso futuro. Desde que a Europa foi tomada por uma forte onda de calor, as mudanças climáticas passaram a ser assunto em qualquer roda. Sobreviveremos como civilização? Como?

Alegria na porta do cine Santa Teresa

A melhor resposta é de Aylton Krenak, xamã e filósofo em cujo pensamento me banho quase sempre: sobreviveremos fazendo contato, “furando o muro das cidades”, diz ele. Mas, quem consegue furar o muro das cidades? Segundo o pensador, a s plantas conseguirão, se tiverem tempo.

Outra pergunta que cabe é: quem será sensível a ponto de perceber que uma planta que nasce entre o asfalto é vida e pode ser nosso caminho para evitar a catástrofe? 

O “balé da boa calçada urbana, sempre repleto de improvisações” é a dança de quem vive a cidade desde seu microcosmo, o bairro. E aqui eu começo a contar a história de minha experiência, na semana passada, acompanhando, como observadora, o passeio de pelo menos trinta crianças, com idades de 3 a 5 anos, que viveram na quinta-feira (5) um aprendizado como cidadãos do seu bairro.

O convite para que eu estivesse junto naquele momento partiu da Nuelna Vieira, uma das sócias da Escola Monte Alegre, que organizou o evento. O projeto é o “Sessão Infantil Cine Santa Casa Monte Alegre”, e começou pouco antes das 14h, quando o grupinho de 11 crianças, de 4 a 5 anos, saiu da Escola Monte Alegre para ir ao cine Santa assistir a “Um filme de cinema”, do diretor Thiago B. Mendonça. Acompanhados pelas professoras com quem diariamente compartilham arte, lazer, educação, cultura, as crianças estavam animadas e leves.

 Cristiany Posner, também sócia da Monte Alegre, uma das professoras que acompanhava a garotada, contou que a ideia do Cine Santa Casa Monte Alegre é, justamente, promover contato das crianças com o bairro. 

“Temos uma parceria de duas décadas com o Cine Santa, e estamos sempre promovendo esses encontros. Durante a pandemia, o projeto ficou morno, mas agora estamos retomando, ganhando a rua de novo, construindo a linguagem com outros comércios. Vamos a restaurantes, salão de beleza, ao lugar onde eles compram o picolé. A ideia é que as crianças usem o bairro como celeiro, o quintal da escola. Queremos ajudar a formar nelas o diálogo e o cuidado com a cidade, entendendo que é preciso ter respeito nas relações. Respeito com o espaço que é coletivo”, disse Cristiany.

Foram duas sessões de cinema naquela tarde do dia 5 de outubro. “Um filme de cinema” foi assistido pela turma de 3 a 5 anos. É um filme bonito, sensível, sem os arroubos de som e imagens pulsantes que as telas usam para chamar atenção. Na história, a menina Bebel, filha de um cineasta, inventa de fazer um filme com seus amigos. A aventura começa aí.

Para Nuelna Vieira, também sócia administradora da Escola Monte Alegre, a ideia é proporcionar às crianças “o uso de uma tela saudável”.

“No cinema você pode rir junto, chorar junto, se emocionar junto com as histórias e as emoções daquilo que está sendo mostrado ali. O contrário disso é viver essas emoções solitariamente. Queremos refletir sobre que olhares que estamos construindo juntos, quando a gente escolhe um filme, ajuda o outro na rua, compartilha a pipoca. Queremos ajudar na construção de uma tela saudável, que possa entrar no cotidiano das crianças como algo bom”, disse ela.

É a formação de vida em grupo, acrescenta Nuelna: “Isso é ouro para nós”.

Vou confessar que, como observadora, o comportamento das crianças me surpreendeu. Passou pela minha cabeça de citadina, acostumada aos arrebatamentos infantis, que elas não teriam paciência para uma mensagem tão lírica num tempo tão diferente do que estamos habituados. Engano meu. Sim, claro que as professoras e o professor precisaram ficar atentos e ajudar, aqui e ali, para acalmar algum ânimo.

Mas, no final, quando perguntei do que mais haviam gostado no filme, Violeta, a mais falante, disse:

‘Foi naquela hora, em que a cachorrinha tinha se perdido. Eu quase chorei”.

Outros concordaram, e seguiu-se uma série de tantos pontos elencados, em alarido, que apenas me fizeram concordar com a proposta da Escola e do Cine. Que bom, eu estava ali em frente a cidadãos e cidadãs que estão sendo cuidados de forma a perceberem uma planta furando o muro de uma cidade. Cidadãos e cidadãs do bairro, que passarão pelas ruas reconhecendo cada pedra, cada esquina, admirando as novidades que, sim, existem, para quem anda implicado com o território.

“Prezamos uma educação onde o coletivo esteja presente: ir à rua, usar os recursos do bairro, poder caminhar junto. Que olhares estamos construindo juntos? Vamos experienciar em coletivo”, disse Nuelna.

Em qualquer cultura, as crianças são portadoras de boas novas, diz Krenak. Em seu último livro, “Futuro ancestral”, o xamã reserva um bom espaço para lembrar aos adultos que as crianças têm o dom da vida, que não podem viver num mundo isoladas em sala de aula para serem alfabetizadas. Ao contrário disso, ele sugere uma relação implicada, em contato  com o meio ambiente em que circulam.

Ouso pensar que aqueles 30 seres em formação que acompanhei na ida ao cinema de seu bairro, estão sendo convidados a pensar seu território não como um mero lugar de passagem. Para bordar em cada um a sensibilidade de furar o muro das cidades, como uma plantinha faz no asfalto, é preciso dar chance para fluir a fruição.

Deixo aqui a provocação feita por Krenak em seu livro, apenas como reflexão:

“Vocês topariam liberar a sua criança nos próximos cinco, seis anos de qualquer formatação e apoiar uma experiência lúdica com a água, com o rio, com a terra, com o fogo, com tudo, para ela ser um elemento de transição global, de mudança de mentalidade no mundo?”.

Krenak é radical, no sentido de ir à raiz das questões. Mas não nos poupa a possibilidade de pensar além.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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