A arte nos indica o caminho
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Tenho uma relação de amor e ódio com a cidade onde vivemos. O Rio de Janeiro, para mim, é como aquele amante do qual não se consegue pensar em separar, mas que de vez em quando nos entorpece até os bons sentimentos. A desordem urbana me fere, a falta de árvores, o desleixo com os desassistidos – dia desses os vi, às pencas, tentando ajeitar um canto para descansar, bem em frente a um hospital público, coisa que, para mim, é paradoxal, afinal, ali não é lugar de cuidados? Por que não se estende os cuidados hospitalares aos que estão na rua?

Pensamentos que vão e voltam. Mas, quando vão, muitas vezes me pego com um olhar agradecido à paisagem, aos bairros que ainda preservam árvores. Ultimamente, porém, instigada pela obra de Jane Jacobs, “Morte e vida das grandes cidades” (Ed. Martins Fontes), indispensável para a reflexão contemporânea sobre a urbanidade,  estou também muito simpática à diversidade dessa cidade.

Perdoem o nariz de cera. Para você, que não conhece a expressão nascida nas antigas e belas e tumultuadas redações de jornais, eu explico: nariz de cera é quando o autor se estende demais para chegar ao assunto sobre o qual ele realmente vai falar. Sendo assim, sem mais delongas…

Sábado, dia 13 de maio, disse sim a um convite amabilíssimo, presente antecipado de Dia das Mães, e me vi, no fim da tarde, empenhada em chegar ao Theatro Municipal. Saí de casa em cima da hora, o que me proibiu de utilizar o transporte público, como sempre prefiro fazer. Peguei um táxi.

O espetáculo faz parte da série Celebrações do TMRJ, soube depois. “A Missa de Requiem”, do italiano Giuseppe Verdi, compositor romântico do século XIX, pungente, considerado um dos mais influentes da época, assim como Wagner. Verdi teria sido o Wagner da Itália ou Wagner teria sido o Verdi da Alemanha? À saída, conversamos em torno do tema, e minhas caraminholas só se alegraram. Como é bom pensar, imaginar, afirmar, debater… assuntos que não sejam referentes ao nosso triste passado recente político. Aliás, bom que se diga: a cultura está voltando ao nosso cotidiano. Alvíssaras!

Tenho sempre a sensação de aconchego histórico, segurança afetiva, quando vou ao Theatro Municipal. É mais ou menos como ter certeza de que as ideias da gente ficam, mesmo depois de virarmos átomo. A arte nos imortaliza. Tantos passaram ali por aquelas escadas, desde 1909, quando foi inaugurado. Tantos se encostaram nos mármores dos parapeitos. E todos com a mesma pulsão que a minha naquele momento: ouvir uma bela música, encontrar a arte.

 E que belos cantores nos receberam naquele palco! E quantos instrumentos, regidos com galhardia e gentileza pelo maestro Tobias Volkmann. Meu coração ficava aos saltos quando o coro assumia seu papel.

Plena daquele som, desgarrei-me um pouco do cenário e fui ao banheiro. Quem já foi ao Theatro Municipal sabe que o banheiro é um lugar especial, com as janelas abertas para a rua. Foi naquele momento em que vivi intensamente a certeza de que o Rio de Janeiro é diverso. A atmosfera do século XVIII, tensa e comovente, foi atravessada pelo som de um evento que acontecia na Cinelândia, com música funk e um vozerio animado de quem está em festa.

Deixei-me ficar um tempo ali, ouvindo. Em casa, folheei novamente a obra de Jacobs no capítulo em que ela se dedica especialmente às misturas de usos das cidades:

“Como as cidades podem gerar uma mistura suficiente de usos – uma diversidade suficiente – por uma extensão suficiente de áreas urbanas para preservar a própria civilização”, pergunta-se ela.

É esse um dos caminhos para preservar. Não só a civilização urbana como a biodiversidade das florestas, tudo precisa ser desigual, às vezes destoante, incompatível, para que se abra espaço à existência dos seres.

Não é fácil. E é um aprendizado diário, sobretudo num sistema que celebra a repetição para tornar mais fácil o controle. A arte nos indica o caminho.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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