‘A planta da cidade’
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Uma das delícias das feiras-livres é a profusão de cheiros, cores, sons. No caso da feira-livre que alimenta meu bairro, acrescente-se profusão também de produtos que são oferecidos às pessoas.

No início, quero dizer, há cerca de década e meia, quando eu comecei a frequentá-la, “minha feira” (sim, a gente passa a ter uma relação de posse quando se gosta muito de algo ou alguém…somos assim: humanos demasiadamente humanos), continuando… “minha feira” tinha poucas barracas. Todas elas ofereciam o que os mercados de  sempre oferecem: frutas, legumes e carnes de peixe, de frango ou porco.

O tempo foi passando e as ofertas passaram a ser mais diversificadas. Alguns acreditam que a crise econômica empurrou pessoas a ocuparem o papel de mercadores. Fato é que, semana a semana, eu reparava uma barraca vendendo roupas, outra vendendo pães, outra vendendo objetos antigos. E, como o fenômeno foi crescendo, creio que está sendo bom para os novos comerciantes.

Foi assim que, semanas atrás, uma nova barraca preencheu um espaço ainda vazio. O homem é um vendedor de livros, produto que não tinha marcado presença no pedaço. E foi muito bem recebido, já que meu bairro tem pessoas que gostam de ler. Pelo menos, assim parece.

Parei um dia, folheei um pouco. Mas, ressabiada como somos os devoradores de livros, me desanimei com a presença de uma família ruidosa, que com garrafas de cerveja em mãos, pegavam livros aos montes, como se batatas fossem. E, depois, ofereceram um cartão de crédito que não passou. Afastei-me antes de se deslindar a questão bancária.

Semana seguinte, voltei. Como era mais cedo, o homem estava acabando de armar a exposição de livros. Tive tempo de me esbaldar. Ele é um ótimo curador,  oferece uma parte de livros usados, a preço de sebo, e outra de livros novos, a preço normal. Muito bons títulos.

Foi na parte de livros novos que encontrei “A planta do mundo”, de Stefano Mancuso, fundador da neurobiologia vegetal. Há tempos eu flerto com este autor, mas cobram um valor bem alto por seus livros, impeditivos para mim. Este, no entanto, publicado pela Editora Ubu, estava sendo vendido a um valor mais em conta. Não pestanejei, feliz por não ter que disputá-lo com um grupo de pessoas que já chegava, para alegria do vendedor e meu muxoxo. Assim é a vida.

Fiquei tão feliz com o conteúdo do livro, que decidi compartilhar com vocês e recomendar muito a leitura. É essencial para este momento que estamos vivendo. Essencial mesmo, sem exageros.

Falo de um momento em que estamos sentindo na pele, muitos infelizmente de forma bem trágica, os efeitos do aquecimento global nas cidades em que moramos. Mancuso, um apaixonado por plantas, que as trata de forma respeitosa, quase solene, em “A planta da cidade”, uma das oito crônicas do livro, faz o link necessário, urgente, mas que é muito difícil para a maioria. O link entre cidades, ilhas de calor e árvores.

A má notícia é que  não vem de agora esse descaso da humanidade com um fato tão explícito:

“Em última análise, as cidades, independentemente do tamanho, só podem se desenvolver porque, em algum outro lugar do planeta, existem recursos naturais que são explorados para alimentar o seu desenvolvimento”, escreve Mancuso.

O fato explícito ao qual me refiro é que para manter o funcionamento do ciclo de uma cidade, com suas veias de transporte, sua multidão, carros, edifícios enormes tapando o vento, a presença de plantas é essencial. Mas, como diz Mancuso, “basta olhar para as nossas cidades, do alto, para perceber que são espaços totalmente minerais, com edificações que ocupam até o último metro quadrado possível”.

E, desse jeito, as cidades vão se tornando causa e vítimas dos eventos extremos que têm origem no aquecimento global. Fenômeno este que muitos ainda se dão ao luxo de duvidar dele. É cansativo ouvir pessoas dizendo: “Ah, o Rio sempre foi quente, em 1965 eu senti um calor horroroso, em 1992, também… Não tem nada de diferente”.

Tem, sim. Os cientistas sabem disso, reúnem-se há tempos, no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês) para, voluntariamente, traçar a linha vermelha de nossa espécie. O planeta está ficando mais quente e lotado desde a Revolução Industrial, quando começamos a emitir gases das máquinas criadas para nosso conforto.

“O fosso que existe entre a compreensão do fenômeno e da sua gravidade no seio da comunidade científica e a compreensão da maioria dos cidadãos é enorme”, sintetiza Mancuso.

Por outro lado, Mancuso traz a boa notícia: “Se as cidades são particularmente vulneráveis ao aquecimento global, a boa notícia é que isso acontece onde o aquecimento pode ser combatido com mais eficácia”, diz ele.

Como? “Nada impede que uma cidade fique totalmente coberta de plantas”. Por que os planejadores de cidades não fazem isto? Permanece um mistério, diz Mancuso.

Nem na antiguidade isto aconteceu. Se bem que, naquela época, ainda não se tinha a certeza de que árvores poderiam nos livrar do aquecimento. De qualquer modo, Mancuso traz o exemplo da pintura renascentista “A cidade ideal”, hoje exposta em Urbino, comuna italiana, onde não se via uma única árvore plantada.

Como não podia deixar de ser, Mancuso termina sua crônica sugerindo mudar nossa representação de cidade.

“A imagem da selva urbana não deve lembrar um lugar cheio de perigos, mas, ao contrário, uma parte do ambiente natural que, conscientemente e por meio das árvores, ajuda a transformar nossas cidades em um nicho ecológico duradouro”.

Fico pensando, só para terminar, que os homens e mulheres (mais homens do que mulheres, sempre), que decidem a urbanização, deveriam andar mais pelas ruas. Quando se tem uma rotina de pisar apenas em chão de carros, elevadores, helicópteros e salas de conferência ou escritórios, fica difícil entender a falta que fazem as árvores nas calçadas de uma cidade. Hoje pela manhã, passei por mais um triste tronco de uma belíssima espécie que foi cortada porque suas raízes estavam dilacerando a calçada onde estava plantada.

Especialmente deliciosa a sombra que aquela imensa árvore proporcionava aos pedestres. Passo por lá diariamente, e muitas vezes já me deixei ficar embaixo dela, a ouvir o barulho das maritacas.

Faz sentido?

A foto que ilustra este post foi feita por mim num dia triste na Rua da Carioca, Centro do Rio, com a queda de uma árvore

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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