O que há para comemorar no aniversário da Declaração dos Direitos Humanos
Klein

Paris estava especialmente fria naquele dezembro de 1948. O outono já se despedia para dar passagem ao inverno, que deixaria as charmosas avenidas parisienses cobertas de neve. Foi neste clima que aconteceu a Assembleia Geral das Nações Unidas, três anos depois do fim da II Guerra. Os 193 países-membros da ONU elaboraram o texto que se tornou o mais traduzido do mundo e inspirou as constituições de muitos Estados e democracias recentes. É um documento marco na história dos direitos humanos.

A assinatura aconteceu no dia 10 de dezembro. Portanto, daqui a cinco dias comemora-se 74 anos. Não é uma data redonda, não teremos manifestações ruidosas. Aqui e ali surgirão alguns eventos, como no caso do Sesc de São Paulo, que vai realizar, ao longo deste mês, uma programação pautada na efeméride, com shows, espetáculos, rodas de conversa, oficinas, filmes e demais ações socioeducativas (a maior parte, gratuitas).

Será bom ter rodas de conversa. E será bom que nas rodas de conversa fique bem claro que a humanidade não tem muito que comemorar neste sentido.

Vivemos uma crise civilizatória, em que aos horrores de uma pandemia juntaram-se os eventos extremos provocados pelas mudanças climáticas. E tudo isso, como sempre, afetou muito mais as pessoas vulneráveis socialmente. A desigualdade social, outro imenso mal, está ainda mais escancarada: a fome atinge 819 milhões de pessoas (dados do Relógio Mundial da Fome).

A foto que escolhi para ilustrar este post pertence ao site de Naomi Klein (https://naomiklein.org/).

A migração forçada por violência e crise climática não nos deixa de horrorizar com as cenas dramáticas de pessoas que se lançam aos mares para tentar fugir de seu território. Se, para quem tem moradia e sustento, os eventos extremos provocados pelas mudanças climáticas representam transtornos urbanos representativos, para quem não tem uma coisa ou outra, pode representar a morte. Ou, na maioria dos casos, inviabiliza a vida onde mora.

Um retrato trágico dessa classe de pessoas é Dadaab, conhecido como o maior campo de refugiados do mundo, na fronteira entre o Quênia e a Somália, que tem cerca de 500 mil pessoas. O jornalista Jamil Chade esteve lá em 2011 e conta, em seu livro “10 histórias para tentar entender um mundo caótico” (Ed. Sextante) a situação daquelas pessoas:

“Dadaab é uma prisão a céu aberto e seus moradores cumprem uma pena perpétua. Os refugiados não podem se mover livremente, faltam comida, água e segurança. Quase  ninguém tem trabalho e não existe a perspectiva de um dia sair do acampamento. Expulsos do seu país pela fome e a violência, os refugiados descobrem que também não são bem-vindos no Quênia, que os coloca nesse local, e nenhum outro governo no mundo está disposto a realocá-los”, escreve Chade.

Uma pesquisa na internet para saber a situação atual de Dadaab nos dá poucas informações. O complexo, que tem cinco campos, já pode ser considerado a cidade mais miserável do mundo. Há uma crise de suicídios, já que não são apresentadas perspectivas aos jovens que chegam a Dadaab. A ONU está presente, assim como ONGs internacionais, fazendo o que podem fazer. Mas, de verdade mesmo, o que aquelas pessoas precisam é de sentido na vida.

Segundo a agência da ONU para refugiados, a Acnur, o número de pessoas forçadas a deixar suas casas tem crescido ano após ano durante a última década e se encontra no nível mais alto desde que começou a ser registrado. A guerra na Ucrânia ajudou a elevar este número para cerca de 100 milhões de pessoas. Só em 2021, foram 4,6 milhões de pessoas que solicitaram reconhecimento na condição de refugiado.

Um anúncio feito pela ONU na quinta-feira dia 1 de dezembro, conta que em 2023 haverá 339 milhões de vítimas dos eventos extremos, o que significa que essas pessoas precisarão de ajuda humanitária. É um recorde. E um aumento de 65 milhões em relação ao ano passado. Para isso será preciso contar com a solidariedade das nações mais ricas e de agências parceiras.

Essas 339 milhões de vítimas estarão espalhadas entre 68 países. Em dez deles, as necessidades são particularmente altas. Desses dez, seis estão na África, três na Ásia e apenas um na Europa, a Ucrânia.

O direito a procurar e a se beneficiar de asilo em outros países está assegurado a todas as pessoas no 14º artigo da Declaração. O Quênia, apesar de estar  entre os países mais pobres do mundo, abriu suas portas, o que alguns países mais ricos não fazem.

E aqui estamos nós, com 8 bilhões de pessoas viventes no planeta e com todos esses problemas. Um olhar mais otimista, no entanto, pode surfar em outras ondas e conseguir, sim, motivos para comemorarmos. Entre eles, o fato de eu estar aqui, sentada em minha mesa de trabalho, teclando um texto com informações que podem ser úteis a um sem número de pessoas. E imediatamente.

Podem imaginar como era, no início do século XX, escrever um livro?

A Ciência é outro motivo para festejarmos.  Em pouco tempo, assim que se descobriu a existência do vírus pandêmico, os cientistas conseguiram isolá-lo e criar uma vacina. Em números oficiais, 14,9 milhões de pessoas morreram. Um século antes, em 1918, a gripe espanhola matou 50 milhões de habitantes em todo o planeta.

Temos, também por conta da Ciência, uma expectativa de vida muito maior do que há um século. E alguns estudos preveem que seremos cerca de 12,6 bilhões de pessoas no planeta até o fim deste século.

Há espaço suficiente para todos. Há campos para plantar e comer alimentos. Mas precisaremos ser mais solidários uns com os outros. E isto passa pela consciência adotada pela Conferência de Estocolmo, em 1972: “Somos um só planeta”.   

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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