Era uma vez… um tempo em que a humanidade ainda não tinha delegado para a tecnologia o seu poder de descobrir e de criar coisas.
O ano era 1967, e uma questão se impunha fortemente aqui no Rio de Janeiro: a falta de água. Sobretudo na Zona Sul, que na época recebeu o apelido de “polígono das secas”. Talvez por ser uma região frequentada por pessoas do andar de cima, esse incômodo foi ganhando as páginas dos jornais diariamente. E uma providência se impunha.
Mas só tinha uma solução: era preciso levar água, levar muita água, da Estação de Tratamento do Guandu, situada em Nova Iguaçu, até a Gávea, Zona Sul. Para isso seria preciso escavar túneis nas rochas, considerando que a região era marcada por maciços rochosos. Através desses túneis, e usando apenas a força da gravidade, seria possível fazer chegar a água na casa das pessoas.
Mas, como eu lembrei aí em cima, os tempos eram outros. A tecnologia ainda não estava tão avançada. Assim mesmo – e aí está a grande evolução humana – o feito foi conseguido.
A obra do século, como foi chamada na época a construção da Elevatória Lameirão, escavou túneis de grandes diâmetros por cerca de 43 quilômetros. Dizia-se que esta extensão era a soma de todos os túneis construídos no Brasil.
Num determinado trecho do longo caminho, por exatos 11 km, a água precisaria de pressão para seguir adiante, já que não havia declives, a gravidade não colaboraria. Assim foi feito. E a Estação de Tratamento, em Santíssimo, foi então ligada ao reservatório dos Macacos, na Gávea.
A grande construção empregou 45 mil operários, gastou sete milhões de sacos de cimento e custou ao governo 129 bilhões de cruzeiros, moeda da época. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) emprestou 40 bilhões. O resto foi dinheiro do contribuinte.
É este portento, que ainda hoje é a maior elevatória subterrânea de água tratada do mundo, que fui visitar na semana passada. Tirei algumas fotos, que posto aqui junto com esse texto. Fui num comboio de jornalistas levados pela Cedae, que hoje é uma empresa privatizada e dividida.
As estruturas hidráulicas ficam a 64 metros abaixo do nível do terreno, em Santíssimo. É uma sensação estranha, mas dá para suportar. Vale a visita. A Cedae está começando a abrir a Elevatória de Lameirão para visitação, e acho bem interessante levar lá, inclusive, as crianças. Pode ajudar a ampliar o contato – por consequência, o respeito – a todas as coisas que nos cercam.
Não é um milagre, não acontece do nada. Para que a água jorre no momento em que se abre a torneira de casa – para a parte da população que tem esse direito – foi e é necessário uma estrutura projetada por homens. É bom conhecê-la. E tem um valor agregado: será possível, também, conhecer detalhes da origem do Sistema Guandu e ver de perto toda a maquinária que o envolve.
Olhar as fotos da construção, expostas na recepção da construção, nos leva a refletir sobre o quanto já fomos capazes de construir coisas boas, mesmo sem a tecnologia de hoje, tão decantada como a “grande solução” de todos os nossos males.
Amplio o pensamento para o mundo do trabalho.
Não há registro sobre número de operários mortos durante as escavações, mas as fotos mostram que, naquele tempo, os equipamentos de proteção individual, hoje obrigatórios, não eram respeitados. Muitos operários sem camisa, sem capacete, foram capazes de abrir caminho entre as pedras. Hoje seriam substituídos por máquinas, será?
Um relatório divulgado em 2017 pela consultoria McKinsey Gobal Institute dá conta de que entre 400 e 800 milhões de pessoas em todo o mundo serão afetadas pela automatização. Essas pessoas terão que encontrar uma outra forma de ganhar a vida até 2030.
Numa reportagem publicada por Ana Paula Evangelista em EPSJV/Fiocruz no dia 5 de julho de 2018 há ainda um outro estudo, desta vez feito por brasileiros e apresentado no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, naquele mesmo ano. Nos países cobertos pelo estudo, diz o documento, as tendências atuais podem levar a um impacto líquido de mais de 7,1 milhõespostos de trabalho perdidosentre 2015 e 2020 – dois terços dos quais estão concentrados em funções rotineiras de escritório e administração.
Em contrapartida, ainda segundo o texto, haverá um ganho total de dois milhões de empregos nas áreas de computação, matemática, arquitetura e engenharia. O relatório resulta de uma pesquisa feita pelos 300 maiores empregadores do mundo, responsáveis por 13 milhões de empregos no planeta.
Ou seja: noves fora, vamos sair perdendo. Tempos difíceis.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.