O ano era 1993. Recém chegado do exílio, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, indignou-se com a quantidade de pessoas famintas no país: à época, eram 32 milhões de pessoas. Magro, com um olhar azul cativante, Betinho tornou-se grande ao ancorar uma campanha que mobilizaria o país inteiro em prol de doar alimentos.
O Brasil era um país muito diferente. O primeiro presidente eleito pelo voto direto (Fernando Collor) acabara de ser expulso do cargo que conseguira com falsas promessas, de caçar os marajás, lembram-se? E os brasileiros, recém-saídos de um regime ditatorial, começavam a aprender que a sociedade civil, quando quer, sabe muito bem conseguir mudanças. Naquele tempo, era preciso ainda explicar o significado de ONG, e assim definiu Betinho: “ONGs se definem pelo que não são. Não são governo, não são empresas, não são partidos, nem igrejas, nem sindicatos. São seres políticos diferentes, fazem política de forma diferente. São autônomos e independentes”. Os brasileiros aprenderam rápido, e a década de 90 teve um boom de criação de ONGs.
A característica da campanha contra a fome pensada por Betinho era a pressa em resolver um problema que colocava milhões de pessoas nos “limites insuportáveis da fome e do desespero”, como lembrou a carta assinada pelo Movimento pela Ética na Política, também encabeçado por ele:
“Não se pode viver em paz em situação de guerra. Não se pode comer tranquilo em meio à fome generalizada. Não se pode ser feliz num país onde milhões se batem no desespero do desemprego, da falta das condições mais elementares de saúde, educação, habitação e saneamento. Não se pode fechar a porta à consciência, bem tapar os ouvidos ao clamor que se levanta de todos os lados”, dizia a carta.
Deu certo. Uma pesquisa realizada pelo Ibope à época mostrou que a campanha era apoiada por nada menos do que 90% da população. A ideia era bem inovadora para a ocasião: o movimento não tinha comitê central, mas vários comitês que se espalhavam pelo país recolhendo e doando os alimentos. Betinho lançou mão da internet, que na época engatinhava no Brasil, para unir as pessoas, o governo, os empresários.
Quase trinta anos depois… a ONG criada por Betinho, Ação da Cidadania, acaba de lançar a campanha Natal sem Fome 2022. O país é outro, mas a quantidade de pessoas em situação de miséria é bem parecida. Em 8 de junho, um relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), divulgado em parceria com a Ação da Cidadania, mostra que 33 milhões de brasileiros passam fome.
A intensidade do aumento desse número é o que assusta. Em apenas um ano, segundo o relatório, são mais de 14 milhões de novos famintos no país. E está claro que as pessoas mais atingidas são as mulheres: seis em cada dez domicílios em insegurança alimentar são liderados por mulheres.
Mudanças na intensidade, mas não na forma como a pobreza, a fome se alastram num país extremamente desigual como o nosso. Até porque, como lembra o economista Ladislau Dowbor em seu artigo “Fome, uma decisão política e corporativa” no livro recém lançado “Da fome à fome” (Ed. Elefante), alimentos há. O que falta é o dinheiro e a vontade política para distribuí-los justamente.
“São 33 milhões de pessoas famintas, enquanto exportamos e produzimos mais de três quilos, só de grãos, por pessoa a cada dia… um governo que não toma nenhuma medida para assegurar o acesso básico à alimentação da população, quando os alimentos existem e em abundância, está, no mínimo, incorrendo em prevaricação”, escreve Dowbor.
Argumento sem contestação, como está claro. Com a eleição do presidente Lula da Silva neste domingo (30), alguma mudança neste cenário vai acontecer. Afinal, Lula foi o responsável por tirar milhões de pessoas da miséria enquanto esteve no governo (2003 – 2011).
Mas, já que a situação está posta agora, é hora de corrermos para ajudar. Entrem no site da Ação da Cidadania, doem. A instituição é séria e fará chegar sua doação a quem precisa.
Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.