‘Ser estrangeiro’, um livro que ensina a viver o lugar do outro
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Imagine-se no lugar do outro.

Imagine-se vivendo uma situação semelhante ao que o outro vive.

Imagine-se…

Convidar o leitor para viver, na ficção, o que o outro vive, é uma receita amorosa de escrita.

E é desse jeito que o autor João Paulo Charleaux conquista seus leitores para o livro “Ser estrangeiro” (Ed. Claroenigma, 2022). Um tema dos mais sofridos, que mostra a face mais individualista dos humanos, recebe um tratamento ao mesmo tempo didático e muito sensível.

Dá vontade de espalhar este livro entre jovens, se  assim garantíssemos alguma melhora na forma preconceituosa com que se tratam os estrangeiros.

João Paulo Charleaux tem uma vantagem sobre outros autores: observa, conversa, e tem aquele ímpeto, comum aos jornalistas, de espraiar a informação. Assim, começa o livro contando várias cenas tristes de um balé urbano que já é quase rotina em nossas vidas. O preconceito invade como peste: da senhora letã que pede esmolas sob a neve, à estupidez de um passageiro num trem de Metrô, na França. Embriagado, o sujeito ataca verbalmente pessoas negras que estão no mesmo vagão.

Combinei comigo, lendo Chalraux, nunca mais usar “que bárbaro!” como expressão alegre para enaltecer alguém ou algum feito. Não! Bárbaro, em grego, significa estrangeiro.

“Para o Império Romano, todo estrangeiro era um inimigo por sua própria natureza. Isso significa que, mesmo que não tivesse cometido  qualquer ato hostil contra Roma, ele era, mesmo assim, um inimigo, pelo simples fato de ser de outro lugar”, escreve Chalraux.

Sou, eu também, filha de estrangeiro. E cresci ouvindo: “Minha filha, nunca queira se tornar estrangeira. As pessoas não te tratam bem”.

Desde quando? Desde o Império Romano!

Por acaso estive envolvida recentemente com a leitura de “A situação da classe operária na Inglaterra” (Ed. Boitempo), escrito em 1845 pelo então jovem Friedrich Engels (ele tinha 24 anos). Em todo o livro aparecem referências aos irlandeses, que competiam com os britânicos mesmo a péssima situação em que moravam, se alimentavam e se vestiam. Os irlandeses não gozavam de simpatia, e Engels deixa isso claro. Eram os que mais bebiam, os que menos se higienizavam e os que ensinaram aos britânicos hábitos ruins, entre eles o de andar descalço.

Já no meio do século XIX, a humanidade não suportava os estrangeiros. Mas é uma contradição porque, como lembra Charleaux,  somos seres que se movem.

 É no movimento que os humanos buscam conhecimento e novas experiências. Mas, diferentemente, das aves e dos ruminantes, que vão e voltam sempre ao mesmo lugar, nossa população busca destinos promissores. E, em geral, se junta em cidades, que ficam mais e mais superlotadas. Tudo bem, porque é desse jeito mesmo que somos mais criativos.

Só não podemos aguentar a fome, as guerras, os eventos extremos que destroem nossos lares, muitas vezes nosso país (como é o caso das nações-ilhas do Pacífico, ameaçadas de serem mergulhadas no oceano por causa do aumento do mar).

Charleaux passeia pelos conceitos de ser estrangeiro. O migrante, o exilado, o deslocado, o asilado, o refugiado. Cada um desses conceitos é esmiuçado à lupa dos Direitos Humanos assinada em 1948.

“Os ‘combinados’ assinados entre os diversos governos são, portanto, como chaves que tornam possível abrir as portas para as pessoas em necessidade. Essas chaves não são um presente, não são uma esmola. Não são dadas por pena ou por caridade. São direitos”, afirma o autor.

O ponto alto do livro de Charleaux – o primeiro que ele escreve – é quando ele convida o leitor a imaginar. Imagine você vivendo num condomínio que, por circunstâncias tais que ele descreve, vítima de uma explosão, se vê inundado depois de uma chuva, sem luz, onde os vizinhos brigam entre si, onde há corrupção do síndico e, para piorar a situação, um mata outro e o corpo fica estendido no corredor.

O que fazer? Correr dali, é claro.

Imagine mais. Que, ao correr dali, você consegue  chegar ao prédio mais alto e chique, na mesma rua. Mas lá… não lhe recebem. Seguranças dizem não ao seu pedido para entrar, mesmo vendo sua situação: todo molhado, já desesperado, sem casa, sem documentos (que se perderam na água), com fome e sede.

Imagine. Só imagine. E sinta, por um tempo ao menos, enquanto está lendo o livro, o que sente um refugiado.

Em que momento a civilização humana se desapegou de sentimentos solidários, aqueles mesmo que se aprende quando criança? Em que momento as coisas passaram a ter mais importância do que as vidas?

Há uma moral na história contada por Charleaux, o que ratifica o método quase didático. Ele incita o leitor a conhecer novas culturas, e lembra: se você gosta de comida japonesa, é certo que essa gastronomia chegou ao Brasil trazida por migrantes.  

E mais: contra o preconceito, use informação. Não poderia dialogar mais com tudo o que se sabe, e estou cem por cento de acordo.

De minha parte, colaboro quando produzo conteúdo e espalho as notícias.

A notícia de hoje é esta: o livro de Charleaux merece um lugar na estante, sobretudo dos jovens que estão agora começando a caminhar. Eles  precisam se livrar de ideias, expulsar o ranço dos pensamentos antigos e abraçar, finalmente, o respeito ao outro, à diversidade. Sem que isto seja apenas uma retórica inútil.

Amelia Gonzalez é jornalista, foi editora por nove anos do caderno Razão Social do jornal ‘O Globo’ e colunista do Portal G1, também da Globo. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde escreve sobre desenvolvimento sustentável e colabora na Revista Colaborativa Pluriverso e aqui, na revista Entrenós, uma parceria da Casa Monte Alegre e a Pluriverso.

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